02 abril 2021

Pregação da Sexta-feira Santa - texto integral

 
 
 Frei Cantalamessa na celebração da Paixão do Senhor 
 
Na Basílica de São Pedro, o pregador da Casa Pontifícia Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs ao Papa Francisco e à Cúria a reflexão da Sexta-feira Santa.
 

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

“PRIMOGÉNITO ENTRE MUITOS IRMÃOS”

(Romanos 8,29)

Pregação da Sexta-feira Santa de 2021

 

Em 3 de outubro passado, junto à tumba de São Francisco, em Assis, o Santo Padre assinava a sua encíclica sobre a fraternidade “Fratres omnes” (“Fratelli tutti”). Em pouco tempo, ela fez renascer em tantos corações a aspiração quanto a este valor universal, trouxe à luz tantas feridas contra ela no mundo de hoje, indicou algumas vias para se chegar a uma verdadeira e justa fraternidade humana e exortou todos – pessoas e instituições – a trabalhar por ela.

A encíclica é endereçada idealmente a um público vastíssimo, dentro e fora da Igreja: na prática, a toda a humanidade. Toca muitas esferas da vida: da privada à pública, da religiosa à social e política. Devido a este seu horizonte universal, ela evita – justamente – restringir o discurso ao que é próprio e exclusivo dos cristãos. Contudo, pelo final da encíclica, há um parágrafo em que o fundamento evangélico da fraternidade é resumido em poucas, mas vibrantes palavras. Afirma:

Outros bebem de outras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, “para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos” (FT, 277).

O mistério da cruz que estamos a celebraf obriga a concentrar-mo-nos justamente neste fundamento cristológico da fraternidade, que foi inaugurado na morte de Cristo.

No Novo Testamento, “irmão” significa, em sentido primordial, a pessoa nascida do mesmo pai e da mesma mãe. “Irmãos”, em segundo lugar, são chamados os membros do mesmo povo e nação. Assim Paulo afirma estar disposto a tornar-se anátema, separado de Cristo, em vantagem dos seus irmãos segundo a carne, os israelitas (cf. Rm 9,3). Claro que, nestes contextos, como noutros casos, “irmãos” abrange homens e mulheres, irmãos e irmãs.

Neste alargamento de horizonte, chega-se a chamar de irmão cada pessoa humana, pelo facto de ser tal. Irmão é aquele que a Bíblia chama de “próximo”. “Quem não ama o próprio irmão...” (1Jo 2,9) significa: quem não ama o seu próximo. Quando Jesus diz: “Todas as vezes que fizestes isto a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40), compreende toda pessoa humana necessitada de ajuda.

Mas, ao lado destes significados antigos e conhecidos, no Novo Testamento a palavra “irmão” tende sempre mais a indicar uma categoria particular de pessoas. Irmãos entre si são os discípulos de Jesus, aqueles que acolhem os seus ensinamentos. “Quem é a minha mãe, e quem são os meus irmãos? (...) Todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,48-50).

Nesta linha, a Páscoa marca uma etapa nova e decisiva. Graças a ela, Cristo torna-se “o primogénito entre muitos irmãos” (Rm 8,29). Os discípulos tornam-se irmãos em sentido novo e profundíssimo: partilham não apenas o ensinamento de Jesus, mas também o seu Espírito, a sua nova vida de ressuscitado. É significativo que, somente após a sua ressurreição, pela primeira vez, Jesus chama os seus discípulos de “irmãos”: “Vai dizer aos meus irmãos – diz a Maria Madalena – que eu subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu deus e vosso Deus” (Jo 20,17). “Pois tanto o Santificador, como os santificados – lê-se na Carta aos Hebreus – todos procedem de um só. Por esta razão, ele (Cristo) não se envergonha de chamá-los irmãos” (Hb 2,11).

Depois da Páscoa, este é o uso mais comum do termo irmão; indica o irmão de fé, membro da comunidade cristã. Irmãos “de sangue”, também neste caso, mas do sangue de Cristo! Isto faz da fraternidade de Cristo algo de único e transcendente, em relação a qualquer outro género de fraternidade, e deve-se ao facto de que Cristo é também Deus. Ela não se substitui aos demais tipos de fraternidade, baseados na família, nação ou raça, mas coroa-os. Todos os seres humanos são irmãos enquanto criaturas do mesmo Deus e Pai. A isto, a fé cristã acrescenta uma segunda e decisiva razão. Somos irmãos não apenas a título de criação, mas também de redenção; não só porque todos temos o mesmo Pai, mas porque todos temos o mesmo irmão, Cristo, “primogénito entre muitos irmãos”.

*    *    *

À luz de tudo isto, devemos fazer agora algumas reflexões atuais. A fraternidade constrói-se exatamente como se constrói a paz, isto é, começando de perto, a partir de nós, não com grandes esquemas, com metas ambiciosas e abstratas. Isto significa que a fraternidade universal começa para nós com a fraternidade na Igreja Católica. Deixo de lado, por uma vez, também a segunda esfera, que é a fraternidade entre todos os fiéis em Cristo, ou seja, o ecumenismo.

A fraternidade católica está dilacerada! A túnica de Cristo foi cortada em pedaços pelas divisões entre as Igrejas; mas – o que não é menos grave – cada pedaço da túnica, por sua vez, é frequentemente dividido noutros pedaços. Naturalmente, falo do elemento humano dela, porque a verdadeira túnica de Cristo, o seu corpo místico animado pelo Espírito Santo, ninguém jamais poderá dilacerar. Aos olhos de Deus, a Igreja é “una, santa, católica e apostólica”, e assim permanecerá até ao fim do mundo. Isto, contudo, não desculpa as nossas divisões, mas torna-as ainda mais culpáveis e deve nos impulsionar, com mais força, a restaurá-las.

Qual é a causa mais comum das divisões entre os católicos? Não é o dogma, não são os sacramentos e os ministérios: coisas estas que, por singular graça de Deus, mantemos íntegras e unânimes. É a opção política, quando ela se sobrepõe àquela religiosa e eclesial e desposa uma ideologia, esquecendo completamente o sentido e o dever da obediência na Igreja.

É isto, em certas partes do mundo, o verdadeiro fator de divisão, ainda que tácito ou indignadamente. Isto é um pecado, no sentido mais estrito do termo. Significa que o “o reino deste mundo” tornou-se mais importante, no próprio coração, do que o Reino de Deus. Creio que sejamos todos chamados a fazer um sério exame de consciência sobre isto e a converter-mo-nos. Esta é, por excelência, a obra daquele cujo nome é “diábolos”, isto é, o divisor, o inimigo que semeia o joio, como o define Jesus na sua parábola (cf. Mt 13,25).

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Devemos aprender do Evangelho e do exemplo de Jesus. Ao redor dele, havia uma forte polarização política. Existiam quatro partidos: Fariseus, Saduceus, Herodianos e Zelotes. Jesus não ficou do lado de nenhum deles e resistiu energicamente à tentativa de ser arrastado para uma parte ou outra. A comunidade cristã primitiva seguiu-o fielmente nesta opção. Este é um exemplo sobretudo para os pastores que devem ser pastores de todo o rebanho, não apenas de uma parte dele. São eles, por isso, os primeiros a ter que fazer um sério exame de consciência e interrogarem-s3 aonde estão a conduzir o próprio rebanho: se à própria parte (ou ao próprio “partido”), ou à parte de Jesus. O Concílio Vaticano II confia aos leigos, antes de tudo, a tarefa de traduzir as indicações sociais, económicas e políticas do Evangelho em diferentes opções, desde que sejam sempre respeitosas e pacíficas.

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Se há um dom ou carisma próprio que a Igreja Católica deve cultivar em benefício de todas as Igrejas, este é a unidade. A recente viagem do Santo Padre ao Iraque fez-nos ver concretamente o que significa, para quem está oprimido ou afligido por guerras e perseguição, sentir-se parte de um corpo universal, com alguém que pode fazer o resto do mundo escutar o próprio grito e fazer renascer a esperança. Ainda uma vez, cumpriu-se o mandato de Cristo a Pedro: “Confirma os teus irmãos” (Lc 22,32).

Àquele que morreu na cruz “para reconduzir à unidade os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52) elevemos, neste dia, “com coração contrito e espírito humilde”, a oração que a Igreja dirige em cada Missa antes da Comunhão:

Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos Apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja; dai-lhe, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo. Amém.

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Traduzido do italiano por P. Ricardo Faria, ofmcap

VN

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