“ENSINA-NOS A CONTAR OS NOSSOS DIAS,
PARA QUE O NOSSO CORAÇÃO A SABEDORIA ALCANCE
(Sl 90,12)
Primeira Pregação do Advento de 2020
Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.
Um de nossos poetas, Giuseppe Ungaretti, descreve o estado de espírito dos soldados nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial com um poema composto de apenas nove palavras:
Nós ficamos
como no outono
nas árvores
as folhas.
Hoje é toda a humanidade que experimenta esta sensação de precariedade e caducidade por conta da pandemia. “O Senhor – escreveu S. Gregório Magno – ora por palavras, ora por factos adverte-nos”[1]. No ano marcado pelo grande e terrível “fatco” do corona vírus, esforcemo-nos em captar o ensinamento e que daí cada um de nós possa tirar para a própria vida pessoal e espiritual. São reflexões que podemos fazer apenas entre nós, fiéis, e que talvez seria pouco prudente propor, neste momento, indistintamente a todos, para não aumentar a perplexidade que a pandemia provoca em alguns no que se refere à fé.
As verdades eternas sobre as quais queremos refletir são: primeiro, que todos somos mortais e “não temos aqui cidade permanente”; segundo, que a vida do fiel não termina com a morte porque nos aguarda a vida eterna; terceiro, que não estamos sós no pequeno barco do nosso planeta, porque a “Palavra se fez carne e veio morar entre nós”. A primeira dessas verdades é um objeto de experiência, as outras duas são objetos de fé e esperança
“Memento mori!”
Iniciemos meditando hoje sobre a primeira destas “máximas eternas”: a morte. Ela está resumida na antiga sentença que os monges Trapistas escolheram como lema da sua Ordem, “Memento mori”: lembra-te de que morrerás.
Da morte, pode-se falar de duas maneiras diversas: ou em chave kerigmática, ou em chave sapiencial. O primeiro modo consiste em proclamar que Cristo venceu a morte; que ela não é mais um muro contra o qual tudo se quebra, mas uma ponte rumo à vida eterna. O modo sapiencial ou existencial consiste, ao contrário, em refletir sobre a realidade da morte tal como ela se apresenta à experiência humana, com o objetivo de trazer daí lições para bem viver. É a perspetiva em que nos colocamos nesta meditação.
Este último é o modo em que se fala da morte no Antigo Testamento e, em particular, nos livros sapienciais: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que o nosso coração, a sabedoria alcance”, pede a Deus o salmista (Sl 90,12). Tal maneira de olhar a morte não termina com o Antigo Testamento, mas continua também no Evangelho de Cristo. Recordemos a sua admoestação: “Vigiai, portanto, pois não sabeis o dia, nem a hora” (Mt 25,13), a conclusão da parábola do rico que projetava construir celeiros maiores para a sua colheita: “Insensato! Ainda nesta noite vão tomar a tua vida. E o que acumulaste, para quem será?” (Lc 12,20), e, ainda, a sua frase: “Que adianta a alguém ganhar o mundo inteiro, mas arruinar a sua vida?” (cf. Mt 16,26).
A tradição da Igreja apropriou-se deste ensinamento. Os Padres do deserto cultivavam o pensamento da morte, até fazer disto uma prática constante e mantê-lo vivo com todos os meios. Um deles, que trabalhava tecendo fio de lã, tinha adquirido o hábito de deixar o fuso cair, de vez em quando, e “de colocar a morte diante dos próprios olhos antes de pegá-lo novamente”[2]. “Pela manhã – exorta a Imitação de Cristo – pensa que não chegarás à noite, e à noite, não te prometas o dia seguinte” (I,23). Santo Afonso Maria de Ligório escreve um tratado intitulado Preparação para a morte, que tem sido, por séculos, um clássico da espiritualidade católica.
Tal modo sapiencial de falar da morte encontra-se em todas as culturas, não apenas na Bíblia e no cristianismo. Está presente, secularizado, também no pensamento moderno, e vale a pena acenar brevemente às conclusões a que chegaram dois pensadores, cuja influência ainda é forte na nossa cultura.
O primeiro é Jean-Paul Sartre. Ele inverteu a relação clássica entre essência e existência, afirmando que a existência vem antes e é mais importante da essência. Traduzido em termos simples, isto quer dizer que não existe uma ordem e uma escala de valores objetivos e anteriores a tudo – Deus, o bem, os valores, a lei natural – à qual o homem deve conformar-se, mas que tudo deve partir da própria existência individual e da própria liberdade. Cada pessoa deve inventar e realizar o seu destino como o rio, que, avançando, cava sozinho o próprio leito. A vida é um projeto que não está escrito em nenhuma parte, mas é decidido pelas próprias e livres escolhas.
Este modo de conceber a existência ignora completamente o dado da morte e, por isso, é confortado pela mesma realidade da existência que se quer afirmar. O que pode projetar o homem, se não sabe, nem depende dele, se amanhã ainda estará vivo? A sua tentativa assemelha-se ao de um prisioneiro que passa todo o tempo a projetar o melhor itinerário a seguir para passar de uma parede à outra de sua cela.
Mais crível, sobre este ponto, é o pensamento de um outro filósofo, Martin Heidegger, que também parte de premissas análogas e move-se no mesmo viés do existencialismo. Definindo o homem como um “um-ser-para-a-morte”[3], ele faz da morte não um incidente que põe fim à vida, mas a mesma substância da vida, aquilo de que é feita. Viver é morrer. O homem não pode viver sem queimar e encurtar a vida. Cada minuto que passa é subtraído da vida e dado à morte, como, percorrendo de carro uma estrada, vemos casas e árvores a desaparecerem rapidamente atrás de nós. Viver para a morte significa que a morte não é só o fim, mas também o objetivo da vida. Nasce-se para morrer, não para outra coisa.
Qual é, então, – pergunta-se o filósofo – aquele “núcleo sólido, certo e intransponível”, ao qual a consciência chama o homem e sobre o qual se deve fundar a sua existência, se quiser ser “autêntica”? Resposta: O seu nada! Todas as possibilidades humanas são, na realidade, impossibilidades. Toda a tentativa de projetar-se e de elevar-se é um salto que parte do nada e termina no nada[4]. Resta resignar-se, fazer - como dizem - uma virtude da necessidade e até amar o próprio destino. Uma versão moderna do “amor Fati” dos estóicos.
Santo Agostinho também antecipara esta intuição do pensamento moderno sobre a morte, mas para daí tirar uma conclusão totalmente diversa: não o niilismo, mas fé na vida eterna.
Quando nasce um homem – escrevia – fazem-se tantas hipóteses: talvez será belo, talvez será feio; talvez será rico, talvez será pobre; talvez viverá muito, talvez não... Mas de nenhum se diz: talvez morrerá, talvez não morrerá. Esta é a única coisa absolutamente certa da vida. Quando sabemos que alguém está doente de hidropisia (à época, esta doença era incurável, hoje são outras), dizemos: “Coitado, deverá morrer; está condenado, não há remédio”. Mas não deveríamos dizer a mesma coisa sobre alguém que nasce? “Coitado, deverá morrer, não há remédio, está condenado!”. Que diferença há, se num tempo mais ou menos longo ou breve? A morte é a doença mortal que se contrai ao nascer[5].
Dante Alighieri condensou apenas num verso esta visão agostiniana, definindo a vida humana sobre a terra “um viver que é um correr à morte”[6].
VN
Sem comentários:
Enviar um comentário