O caminho aberto na humildade de Cristo
Caríssimos
Iniciamos esta Semana Maior de 2022 num tempo difícil para a humanidade,
em que os males sempre temidos da peste, da fome e da guerra se
traduzem de novo em muitas situações, mais próximas ou mais distantes,
mas que são irrecusavelmente nossas, na terra comum de todos.
Principalmente
nesta semana, queremos avivar a consciência de que esses males tiveram e
continuam a ter resposta da parte de Deus. Sim, de Deus que os
compartilha e salva na paixão, morte e ressurreição de Cristo. Batizados
em Cristo, continuaremos a ser essa resposta, no mesmo Espírito e em
idêntica comunhão com todos. Deus responde como companhia e fonte
inesgotável de vida, agora para depois.
Convém
sempre, em cada celebração, guardar as palavras da “oração coleta”, que
geralmente acentuam o seu sentido particular. A de hoje deu à paixão de
Cristo um significado talvez surpreendente. Começava assim: «Deus
eterno e omnipotente, que, para dar aos homens um exemplo de humildade,
quisestes que o nosso Salvador se fizesse homem e padecesse o suplício
da cruz…».
Prestemos toda a
atenção a este passo: a encarnação e a cruz são o exemplo de humildade
que Deus eterno e omnipotente nos quis dar em Jesus. Modo de dizer que a
omnipotência divina não se manifesta como qualquer poder mundano, mas
precisamente ao contrário, como entrega de si próprio, acompanhando-nos
na fragilidade humana e mesmo na dor mais aguda e imerecida, como foi a
de Cristo, que assumiu a de tantos.
Precisamente
no “húmus” da nossa humanidade comum. Reparemos como humanidade e
humildade se aproximam na grafia e no significado a não perder... Só a
omnipotência do amor divino conseguiria tanto, salvando-nos a todos com
humildade vitoriosa.
E a oração
continuava, pedindo que a mesma humildade que venceu em Jesus nos
assegure a nós a sua vitória pascal. Uma humildade que vence no
contraste com os poderes impositivos daquela ou desta altura, esses sim
passageiros e derrotados como acabam por ser…: «Fazei que sigamos os
ensinamentos da sua paixão, para tomarmos parte na glória da sua
ressurreição.»
Trata-se duma via-sacra a percorrer com Jesus, como ele a percorreu connosco
e continua a percorrer nos mais árduos caminhos das vidas individuais e
coletivas. Se o fizermos, chegaremos aonde Ele chegou e alargaremos no
mundo a sua Páscoa. É o que celebramos agora e nos incumbe sempre.
Deus
salva porque nos acompanha onde mais precisamos de ser acompanhados.
Pouco mais de trinta anos da vida de Jesus neste mundo, mostram-nos como
foi e como continua a ser. Como naquela altura aconteceu, nascido pobre
em Belém, refugiado a seguir no Egito, humilde e trabalhador na oficina
de Nazaré, calcorreando depois as margens do lago e os caminhos da
Galileia à Judeia, sem evitar sequer os da Samaria, ou saindo de Israel
para terra de gentios: eis Deus humanado e convivente, até na própria
morte, a que não se eximiu por fim.
Assim
continua a ser, agora e ressuscitado, multiplicando os sinais da sua
presença no mundo, também e sobretudo junto dos mais pobres de todas as
pobrezas, ou oprimidos de todas as opressões. Sinais da sua presença são
os que, movidos pelo Espírito que nos deixou, lhe reproduzem os gestos
salvadores e ecoam a sua voz consoladora, daqui até à Ucrânia e da
Ucrânia a todos os cenários de muitos dramas e tragédias que não faltam
por esse mundo além, ou aquém.
Muito
significativo é o facto de entre tantos deuses e imperadores daquela
altura, com o seu cortejo de pompas e opressões, os primeiros cristãos
terem descoberto e cantado o inaudito contraste da humildade de Cristo.
Ouvimo-lo há pouco, num hino bem precoce, que havemos de retomar
frequentemente, para que ele ressoe nas nossas vidas e atitudes. «Cristo
Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com
Deus, mas aniquilou-se a si próprio. […] Por isso Deus o exaltou e lhe
deu o nome que está acima de todos os nomes…». Foi este o caminho da
Páscoa de Cristo e é o que nos dispomos a seguir também.
Foi
este o caminho da humildade de Deus e só este pode ser o nosso, para
que a Páscoa continue a acontecer. Deus é sempre humilde e assim se diz
em Cristo, sua palavra encarnada. Assim como na criação que nos mantém
vivos Deus é tão discreto que corremos o risco de não O aperceber, assim
na redenção com que nos recria em Cristo, tudo é humilde porque tudo é
dom. Dom que não se impõe mas oferece, para que todos tenham vida e vida
em abundância - e apenas isto procurando.
Tiveram de aprendê-lo, os primeiros seguidores de Jesus.
Tiveram de o descobrir como servo, para assim o adorar como Senhor. E
Senhor porque capaz de se entregar e de vencer precisamente desse modo.
Ouvimo-lo há pouco no Evangelho: «Levantou-se também entre eles uma
questão: qual deles se devia considerar o maior? Disse-lhes Jesus: […] O
maior entre vós seja como o menor, e aquele que manda seja como quem
serve. Pois quem é o maior: o que está à mesa ou o que serve? Ora Eu
estou no meio de vós como aquele que serve”».
Tiveram
de o aceitar assim e de o imitar depois. Um depois que dura até agora e
que nos propomos retomar nesta Páscoa. Somos Igreja de Cristo no mundo,
quando lhe retomamos a feição, mais conforme e verdadeira. Para que
Deus nos reconheça como seus e a Páscoa de Cristo se difunda.
E
se difunda agora, quando entre nós tantos refugiados anseiam pela
recuperação da sua terra e pela vida dos seus. Os gestos de comunhão
espiritual e solidariedade concreta que se têm somado nestas trágicas
semanas, mostram o melhor do coração humano e reabrem o futuro que a
guerra quis fechar. São prenúncios daquela vida que ressuscitou dum
sepulcro que parecia fechado. Fulguram a Páscoa que Cristo garante. Na
humildade e no serviço, vivamos uma semana realmente “maior”.
Sé de Lisboa, 10 de abril de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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