Sabemo-lo nós, saibamo-lo para todos
Caríssimos
As
festas que celebramos são de Deus e são nossas. Melhor, são de Deus
para nós, como as oferece em Cristo. Concluímos hoje um grande percurso,
das Cinzas com que começámos a Quaresma ao Pentecostes em que o
Espírito do Ressuscitado fez de nós os anunciadores da sua Páscoa.
É
caso para agradecer muito a Deus. É caso para nos perguntarmos se tudo
passou da grandeza da Palavra ouvida e da beleza dos ritos celebrados
para o nosso coração convertido e ainda mais apaixonado por Cristo. Por
Cristo e pelo Evangelho vivo que nos deixou, para o anunciarmos por
palavras e obras.
Nada aconteceria só por nós, que continuaríamos «alienados da vida de Deus» (Ef
4, 18). Mas tudo sucede a partir d’Ele e só d’Ele, que nos recria em
Cristo e nos preenche de Espírito. Hoje é dia de Pentecostes – e nunca
mais deixará de ser, porque a única coisa que definitivamente acontece e
perdura é Cristo e o corpo em que se expande através de nós: «a
realidade está em Cristo», como bem sabia e esclarecia São Paulo (Col 2, 17).
Havia muita gente em Jerusalém naquele dia. Não só muita gente, mas provinda de muitos lados, como ouvimos no trecho dos Atos dos Apóstolos.
E
aconteceu que, saindo para fora, os apóstolos foram por todos escutados
e compreendidos na língua de cada um. E assim continuou a ser até
agora, no Pentecostes que vivemos.
Também
e por maioria de razões hoje em dia. Na altura, estavam muitos em
Jerusalém, de várias proveniências que eram, mas ligados por um motivo
comum, na fé do antigo Israel. Agora, na globalização em que vivemos,
juntam-se na nossa cidade pessoas de muitas nações, para aqui habitarem
algum tempo ou ficarem mais estavelmente – tanto quanto alguma coisa é
estável hoje em dia, na demografia e não só.
Mais
ainda: Na cidade antiga – e em Jerusalém especialmente – reuniam-se
povos que compartilhavam uma base religiosa e cultural comum. Já não é
assim, bem pelo contrário. Não só porque tal base se diluiu, dando lugar
a uma geral indefinição de ideias, sentimentos e costumes, mas também
por ser habitual que cada grupo reflua sobre si mesmo, no que lhe reste
de identidade e convicção.
É
algo que vai crescendo entre a indiferença e o atordoamento que se
acumulam. Porém, para construir ou reconstruir uma cidade, no sentido
comunitário do termo, é preciso bem mais do que um mercado de trabalho,
ou a procura dele. Requer-se conhecimento mútuo, interpessoal e
intercomunitário, mais difíceis hoje, tantas são as gentes, as intenções
e a imparável mobilidade – física e mediaticamente impulsionada.
Requer-se
vontade de partilhar o bem que nos coube, sem que uma tolerância mal
entendida nos dispense de o oferecer aos outros. Tal seria meramente
desinteresse.
Porque é precisamente na dimensão interpessoal que a cidade pode acontecer.
Não é por acaso, antes por sinal, que, desde a Antiguidade, as cidades
ergueram monumentos a figuras de referência comum, nas quais a
generalidade dos habitantes se revia. Era cidade de tal nome ou figura,
como muitas se designaram por esse mundo além.
O
próprio cristianismo aconteceu desse modo, mesmo reorientado a atenção a
tais figuras. Lembremos como São Paulo, aludindo às muitas imagens de
deuses e heróis que povoavam Atenas, preferiu a que estava dedicada a um
“deus desconhecido”, partindo daqui para anunciar o Deus de Jesus
Cristo (cf. At 17, 23).
Aquela
Jerusalém do Pentecostes desapareceu daí a um século, arrasada pelos
romanos, que sobre ela construíram outra, com diferente invocação.
Entretanto, a pregação dos apóstolos anunciava “as maravilhas de Deus” –
que se consubstanciavam num nome, o de Jesus, cuja morte e ressurreição
confirmaram como salvador de todos. Um nome novo que iniciava a cidade
nova, essa mesma em que tantos povos e nações se reuniram até hoje e
onde nós próprios nos inscrevemos aqui.
Assim
se passou da Olissipo romana à Lisboa portuguesa, de tantos “portugais”
passados e outros em gestação, como se vão somando e entrecruzando,
atingindo hoje uma centena de nacionalidades residentes. Entre tantos
nomes de múltiplas línguas, continuamos nós a oferecer o de Jesus, como
agregador comprovado e disponível de sentimentos, práticas e aspirações
maiores.
Sem que nada de
humano se perca, com o que milénios de civilizações e culturas o
acrescentam até hoje. Onde o essencial de várias heranças religiosas e
humanitárias se podem incluir também, como o diz o próprio Jesus Cristo,
num versículo de ouro: «Quem não é contra nós é por nós» (Mc 9, 40).
É
certo que algumas páginas da história nos lembram que o cristianismo
pôde ser usado com outros critérios, demasiadamente temporais e muito
pouco espirituais, esquecendo a distinção fundamental que Cristo fez:
«Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (Mt 22,
21). Mas a divindade total que Cristo oferece não diminui, antes
garante e potencia, a humanidade integral que cada um deve manter, no
respeito pelo que se pode e deve decidir em consciência. Porém, mesmo
nessas alturas, como depois delas, persistiu sempre o cristianismo
essencial e disponível para edificar uma cidade em que caibam todos,
onde o bem se promove em clima de liberdade religiosa autêntica e
solidariedade humana reforçada. O bem é imediatamente compreensível e
agregador, como o foi naquela primeira pregação de Pentecostes.
Mesmo que demoremos algum tempo.
Tanta verdade humano-divina, como a que Jesus nos trouxe, só
paulatinamente é assimilada por todos nós em geral. Por isso ouvimos no
Evangelho de há pouco: «Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos
conduzirá para a verdade plena, porque não falará de Si mesmo, mas dirá
tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que há de vir. Ele me
glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará». Isso mesmo
tem felizmente acontecido e creio que podemos compreender hoje, ainda
mais e melhor, o que Deus nos ofereceu em Cristo.
Porque,
em Cristo, Deus ofereceu-nos aquela totalidade que só a pouco
atingiremos como humanidade, conduzidos pelo Espírito que nos foi
concedido e neste dia especialmente celebramos. A magnífica galeria dos
santos, manifesta como em cada um deles o Espírito reproduziu a vida de
Cristo para a oferecer ao mundo nas mais diversas circunstâncias
temporais e socioculturais. Reparemos como, na relatividade do tempo de
cada um, se foi manifestando e apurando o essencial cristão, que só no
fim se revelará plenamente.
Reparemos
como muitos deles avultaram nos vários saberes humanos e sobretudo na
grande caridade praticada. Nem precisamos de sair da história de Lisboa,
no que teve de realmente cristão. Sim, em António, Joana de Portugal e
Bartolomeu dos Mártires, em João de Brito ou Maria Clara, só para falar
dos naturais daqui, a cidade encontrou, ainda jovens, outros tantos
Pentecostes do Espírito. E aceitemos que o Espírito que neles operou
tanto e tão bem, sopra realmente aonde quer (cf Jo 3, 8) e nos pode surpreender ainda mais.
Assim
podemos e devemos colaborar na construção da cidade. Reconhecendo tudo o
que de bom cada um transporte, na pluralidade de tradições e projetos
que nos traga. E tendo bem presente a exortação de São Pedro à pequena
comunidade cristã de Roma, muito limitada que estava num mundo tão
diverso e já hostil: «no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como
Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele
que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantendo limpa a consciência,
de modo que os que caluniam a vossa boa conduta em Cristo sejam
confundidos, naquilo mesmo em que dizem mal de vós» (1 Pe 3, 15-16).
Palavras
oportunas para o Pentecostes que havemos de cumprir hoje em dia.
Ofereçamos Cristo à cidade que O espera. Sabemo-lo nós, saibamo-lo para
todos.
Sé de Lisboa, 23 de maio de 2021
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa