As periferias como lugar privilegiado da presença da Igreja
O presente Congresso integra-se na caminhada sinodal de Lisboa, iniciada em 2014.
É ponto de convergência de realidades socio-caritativas, mais antigas
ou mais recentes, protagonizadas por comunidades, instituições e várias
iniciativas, tudo mais urgido pela presente pandemia.
Quando nos abeiramos da conclusão da receção sistemática da Constituição Sinodal de Lisboa
(2016), cabe-nos fazer este “ponto da situação”, para melhor
percebermos onde chegámos e como havemos de continuar para diante.
Tudo
em torno do número 53 da Constituição Sinodal de Lisboa, que nos motiva
a “Sair com Cristo ao encontro de todas as periferias sociais e
geográficas”. Propósito que afirma ser “uma prioridade da ação
evangelizadora da Igreja” e “implica uma opção preferencial pelos pobres
e uma proximidade aos excluídos em ordem à promoção da sua dignidade,
nos seus diversos níveis (saúde, educação, habitação, emprego)”.
Tudo
isto é essencial e urgente, comprometendo a sociedade em geral, onde os
cristãos se incluem de parte inteira e em concidadania ativa.
Reparemos, porém, que o enunciado da CSL especifica, que, para
nós, tal se configura muito especialmente como “uma prioridade da ação
evangelizadora da Igreja”. Como acontecia com Cristo, a atenção aos
pobres concretiza o anúncio do Reino: «O Espírito do Senhor está sobre
mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18).
Assim o ilustra cada página dos Evangelhos, máxima inspiração que nos
move, pessoal ou comunitariamente que seja.
O mesmo número da CSL
desdobra este dever em três pontos igualmente importantes: 1º) Uma
aposta no trabalho formativo com as famílias e contextos sociais mais
vulneráveis; 2º) Uma sensibilização da comunidade eclesial para ouvir o
clamor do pobre e o fortalecimento da sua responsabilidade social; 3º) A
necessidade de se acompanharem as constantes formas de reorganização
social, decorrentes de transformações geográficas e urbanas, e as
rápidas mudanças ao nível das condições de mobilidade das populações.
Para
todos os que participámos na assembleia sinodal de novembro-dezembro de
2016, é claro que este enunciado concentra em breves linhas muito do
que se refletiu antes nos grupos sinodais e na última redação lá votada.
Podemos traduzi-lo de modo essencial e simples: Não há mudança social
sem uma formação que ultrapasse, mental e praticamente, situações de
carência grave e persistente; a qualidade cristã duma comunidade mede-se
pela sua sensibilidade aos vários tipos de pobreza e pela resposta que
concretamente lhes dê; e é preciso estar atento à reorganização social
que a mobilidade populacional acarreta. Como sabemos, este último ponto
reflete-se na própria alteração do nosso quadro comunitário, muito mais
fluido hoje em dia.
Sem a
devida atenção a cada um destes pontos, não encontraremos a resposta
certa aos desafios socio-caritativos que enfrentamos. Lembremos como
Cristo compreendia e correspondia ao contexto daqueles que salvava, de
corpo e de espírito. Não faltam detalhes evangélicos a ilustrá-lo.
Reparemos, por exemplo, como, ao curar um leproso, teve em conta o que
estava previsto para que a respetiva reintegração social e religiosa
fosse perfeita: «Vai mostrar-te ao sacerdote e oferece pela tua
purificação o que foi estabelecido por Moisés, a fim de lhes servir de
testemunho» (Mc 2, 44); ou como esteve atento à necessidade
imediata de quem viera de longe: «Tenho compaixão desta multidão. Há já
três dias que permanecem junto de mim e não têm que comer. Se os mandar
embora em jejum para suas casas, desfalecerão no caminho, e alguns
vieram de longe» (Mc 8, 2-3). Idêntica atenção, tão global como
precisa, é pedida aos seus discípulos de hoje, para que o Evangelho
continue a acontecer.
Aliás,
foi isto mesmo que se pretendeu com as Jornadas Vicariais da Caridade e
nalgumas se realizou convictamente. Juntar paróquias e outras agregações
crentes duma determinada zona para apurarem uma necessidade social mais
urgente e ensaiarem uma resposta conjugada a essa mesma, do modo
socio-caritativo mais capaz. Proponho que fique como hábito vicarial
para o futuro, com benefício de quem o pratica e de quem beneficia
diretamente com ele. Digamos que será uma sinodalidade caritativa em que
todos crescerão de facto.
Crescerão de facto, mesmo em termos de verdadeira iniciação cristã.
Como corpo eclesial de Cristo, cada comunidade tem de conformar os seus
membros ao que Ele próprio foi e realizou. Para isso nos deu o seu
Espírito. Transmitindo a sua palavra, rezando como Ele rezou e cuidando
como Ele cuidou de todos, com especial atenção aos que mais precisam.
E
não só por imperativo moral, que também é. Sobretudo porque não há
outro modo de encontrar Cristo vivo, senão aí mesmo onde Ele nos espera:
«Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era
peregrino e recolheste-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e
visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25,
35-36). Cada um destes lugares, como se configurarem agora, são outros
tantos “lugares teológicos”, em que Cristo nos reclama. Quem não os
frequentar, não encontrará o próprio Deus. Apenas se encontrará a si
mesmo, entre ilusões e frustrações.
Daqui que, seja na Igreja doméstica de cada família, seja na comunidade cristã como “família de Deus” (Ef
2, 19), não haverá iniciação cristã autêntica sem simbiose total entre a
palava ouvida, a oração filial e fraterna e a caridade realizada. Temos
sempre de progredir neste rumo, não separando uma dimensão das outras.
Trata-se, afinal, de ampliar em Igreja e reforçar em Cristo o que já
sabemos das relações humanas, que não se realizam sem escuta mútua, sem
entreajuda espiritual e sem resposta concreta às necessidades do outro.
Na sua recente encíclica Fratelli Tutti,
sobre a fraternidade e a amizade social, o Papa Francisco insiste
também neste ponto: «… é importante que a catequese e a pregação
incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a
dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade
inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos» (FT, 86).
Nem
todos fazemos tudo, na comunidade cristã e na missão de a alargar para
além dela, como oferta de vida em Cristo. Mas não esqueçamos que
vocações e carismas têm sempre em vista o bem comum, espiritual ou
social que seja Uma comunidade em que não se acompanhem com atenção e
gosto os progressos sacramentais de cada um, do Batismo ao Crisma, da
Eucaristia à Reconciliação e à Unção dos enfermos, dos Matrimónios às
Ordenações e Profissões religiosas, e em que não se ganhe o gosto de
rezar cristãmente e celebrar em conjunto; ou em que não se assumam as
iniciativas socio-caritativas como algo que nos interessa a todos, seja
nos centros sociais e lares, seja nas cáritas ou nas conferências
vicentinas – para mencionar as mais comuns – não inicia nem cresce,
cristãmente falando.
Muito pelo
contrário, quando integramos bem estas dimensões, através da
comunicação e da corresponsabilidade, realizamo-nos como corpo eclesial
de Cristo e assim mesmo nos alargamos em missão. Disse-o o Papa
Francisco num passo muito sugestivo e mobilizador da sua exortação
apostólica Gaudete et Exsultate, sobre o chamamento à santidade
no mundo atual: «Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia
torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em
comunidade santa e missionária» (GE, 142). Reparemos como junta
Palavra, Eucaristia, fraternidade e missão. Quando falta um destes
pontos, reduz-se e desdiz-se a autenticidade dos outros.
De modo ainda mais incisivo, escrevera o Papa na exortação apostólica Evangelii Gaudium
– essa mesma que motivou o nosso percurso sinodal de Lisboa: «Qualquer
comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem
se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres
vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco
da sua dissolução […]. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo
espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou
discursos vazios» (EG, 207).
É
uma advertência grave, que devemos tomar muito a sério e em permanente
conversão socio-caritativa. Aliás, durante a atual pandemia, muitas
comunidades e instituições se desdobraram em respostas às necessidades
acrescidas da população, quer na distribuição de géneros alimentares e
outros, quer em contactos com pessoas sós, quer no apoio a lares e a
imigrantes. A pandemia vai passar, como sempre acontece – e tanto mais
depressa quanto mais cautelosos e solidários formos. Mas esta ação
redobrada não pode atenuar-se, não só porque muitas necessidades
permanecem e muitas periferias subsistem, mas também porque só assim
seremos, para nós e para os outros, sinal eloquente e experiência viva
de Cristo no mundo.
A
isto se liga o tema da “nova evangelização”, muito presente na vida da
Igreja desde São João Paulo II, que a queria “nova no ardor, nos métodos
e nas expressões”. A grande mudança social e cultural que vivemos
requere-a certamente. Quer na maneira de viver e conviver, quer na
concentração urbana e na mobilidade interurbana, quer na grande
variedade de situações e percursos, quer nos novos modos de comunicar,
aprender e trabalhar, tudo é diferente do que era ainda há pouco e
pede-nos para anunciar o Evangelho de sempre na novidade do tempo.
Também
o Papa Francisco nos fala da “nova evangelização”. Um breve relance
sobre algumas das suas afirmações neste sentido, faz-nos concluir que
ela tem em conta as referidas mudanças sociais e culturais e se foca
muito especialmente na atenção aos pobres, materiais ou espirituais que
sejam.
Logo no texto
programático do seu pontificado, que assumimos convictamente para o
nosso percurso sinodal de Lisboa, resume assim o quadro em que nos
movemos: «Uma cultura inédita palpita e está em elaboração na cidade. O
Sínodo [Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização, 2012] constatou
que as transformações destas grandes áreas e a cultura que exprimem são,
hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização. Isto requer imaginar
espaços de oração e de comunhão com caraterísticas inovadoras, mais
atraentes e significativas para as populações urbanas» (EG, 73).
«Imaginar
espaços de oração e de comunhão», pede-nos o Papa. Reparemos que oração
e comunhão andam ligadas, relacionando-nos com Deus e com os outros a
partir de Deus. Percorrendo tantos lugares do nosso Patriarcado,
verifico e agradeço o facto de não faltarem comunidades em que isto
mesmo vai acontecendo na simplicidade do dia-a-dia, na vida litúrgica e
na atenção aos pobres. Nem quero imaginar quanto perderíamos, como
sociedade em geral, se não contássemos com a nossa rede paroquial e
comunitária e a sua atividade catequética, litúrgica e
socio-caritativa…
Quando se
fala em evangelização, só se pode defini-la no modo como Cristo a
realizou, retomando “com novo ardor, novos métodos e novas expressões”, o
sentido que Ele próprio lhe deu, ou seja, anunciar o Evangelho aos
pobres, de toda a pobreza que seja e nas suas novas formas também. Isso
mesmo acentua o Papa Francisco, afirmando que tal atitude, além de
corresponder a uma necessidade indesmentível é também o único modo de
encontrarmos realmente a Cristo, que neles nos espera: «A nova
evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas
e a colocá-las no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a
descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas
causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a
acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através
deles» (EG, 198). Concluamos que centralizar as periferias
começa por estar atento a elas e tomá-las como lugar pessoal ou social
onde Deus nos espera e reclama.
Mas
é muito mais do que simples voluntarismo. Falando-nos do “espírito da
nova evangelização”, o Papa alia ação e oração, como um movimento de
coração que leva à prática. Dizendo, entre muito mais, o seguinte:
«Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que rezam e
trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas
místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário,
nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que
transforme o coração» (EG, 262).
De que transformação do coração se trata, explicará depois o Papa na bula Misericordiae Vultus,
de proclamação do Jubileu da Misericórdia, que vivemos em 2015-2016.
Escreveu assim: «No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na
nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo
entusiasmo e uma ação pastoral renovada. É determinante para a Igreja, e
para a credibilidade do seu anúncio, que viva e testemunhe, ela mesma, a
misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos para penetrarem o
coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente o caminho para
regressar ao Pai, deve irradiar misericórdia. […] Nas nossas paróquias,
nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver
cristãos -, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de
misericórdia» (MV, 12).
Reparemos
bem na palavra “misericórdia” e no seu sentido mais profundo. Significa
ter o coração no que é “mísero”, isto é, mais frágil e carente. Só
assim coincidiremos com o próprio coração divino, como se revelou nos
sentimentos e gestos de Jesus Cristo. Não fez grandes discursos sobre o
tema, ainda que o tenha magnificamente ilustrado em parábolas como a do
“pai misericordioso”, mais conhecida como do “filho pródigo” (cf. Lc 15, 11 ss). Não precisou de fazer grandes discursos, porque as suas atitudes falavam bem por si.
Concluamos:
O “oásis de misericórdia” que cada comunidade deve ser, para se chamar
legitimamente cristã, tanto responde à procura dos pobres como
“localiza” a presença de Deus.
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Torres Vedras, 15 de maio de 2021
Patriarcado de Lisboa
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