15 maio 2021

Intervenção no Congresso Diocesano da Pastoral Sócio-caritativa

 

 

As periferias como lugar privilegiado da presença da Igreja 

 
O presente Congresso integra-se na caminhada sinodal de Lisboa, iniciada em 2014. É ponto de convergência de realidades socio-caritativas, mais antigas ou mais recentes, protagonizadas por comunidades, instituições e várias iniciativas, tudo mais urgido pela presente pandemia. 
Quando nos abeiramos da conclusão da receção sistemática da Constituição Sinodal de Lisboa (2016), cabe-nos fazer este “ponto da situação”, para melhor percebermos onde chegámos e como havemos de continuar para diante. 
Tudo em torno do número 53 da Constituição Sinodal de Lisboa, que nos motiva a “Sair com Cristo ao encontro de todas as periferias sociais e geográficas”. Propósito que afirma ser “uma prioridade da ação evangelizadora da Igreja” e “implica uma opção preferencial pelos pobres e uma proximidade aos excluídos em ordem à promoção da sua dignidade, nos seus diversos níveis (saúde, educação, habitação, emprego)”. 
Tudo isto é essencial e urgente, comprometendo a sociedade em geral, onde os cristãos se incluem de parte inteira e em concidadania ativa. Reparemos, porém, que o enunciado da CSL especifica, que, para nós, tal se configura muito especialmente como “uma prioridade da ação evangelizadora da Igreja”. Como acontecia com Cristo, a atenção aos pobres concretiza o anúncio do Reino: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). Assim o ilustra cada página dos Evangelhos, máxima inspiração que nos move, pessoal ou comunitariamente que seja. 
O mesmo número da CSL desdobra este dever em três pontos igualmente importantes: 1º) Uma aposta no trabalho formativo com as famílias e contextos sociais mais vulneráveis; 2º) Uma sensibilização da comunidade eclesial para ouvir o clamor do pobre e o fortalecimento da sua responsabilidade social; 3º) A necessidade de se acompanharem as constantes formas de reorganização social, decorrentes de transformações geográficas e urbanas, e as rápidas mudanças ao nível das condições de mobilidade das populações.
Para todos os que participámos na assembleia sinodal de novembro-dezembro de 2016, é claro que este enunciado concentra em breves linhas muito do que se refletiu antes nos grupos sinodais e na última redação lá votada. Podemos traduzi-lo de modo essencial e simples: Não há mudança social sem uma formação que ultrapasse, mental e praticamente, situações de carência grave e persistente; a qualidade cristã duma comunidade mede-se pela sua sensibilidade aos vários tipos de pobreza e pela resposta que concretamente lhes dê; e é preciso estar atento à reorganização social que a mobilidade populacional acarreta. Como sabemos, este último ponto reflete-se na própria alteração do nosso quadro comunitário, muito mais fluido hoje em dia. 
Sem a devida atenção a cada um destes pontos, não encontraremos a resposta certa aos desafios socio-caritativos que enfrentamos. Lembremos como Cristo compreendia e correspondia ao contexto daqueles que salvava, de corpo e de espírito. Não faltam detalhes evangélicos a ilustrá-lo. Reparemos, por exemplo, como, ao curar um leproso, teve em conta o que estava previsto para que a respetiva reintegração social e religiosa fosse perfeita: «Vai mostrar-te ao sacerdote e oferece pela tua purificação o que foi estabelecido por Moisés, a fim de lhes servir de testemunho» (Mc 2, 44); ou como esteve atento à necessidade imediata de quem viera de longe: «Tenho compaixão desta multidão. Há já três dias que permanecem junto de mim e não têm que comer. Se os mandar embora em jejum para suas casas, desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe» (Mc 8, 2-3). Idêntica atenção, tão global como precisa, é pedida aos seus discípulos de hoje, para que o Evangelho continue a acontecer. 
Aliás, foi isto mesmo que se pretendeu com as Jornadas Vicariais da Caridade e nalgumas se realizou convictamente. Juntar paróquias e outras agregações crentes duma determinada zona para apurarem uma necessidade social mais urgente e ensaiarem uma resposta conjugada a essa mesma, do modo socio-caritativo mais capaz. Proponho que fique como hábito vicarial para o futuro, com benefício de quem o pratica e de quem beneficia diretamente com ele. Digamos que será uma sinodalidade caritativa em que todos crescerão de facto.

Crescerão de facto, mesmo em termos de verdadeira iniciação cristã. Como corpo eclesial de Cristo, cada comunidade tem de conformar os seus membros ao que Ele próprio foi e realizou. Para isso nos deu o seu Espírito. Transmitindo a sua palavra, rezando como Ele rezou e cuidando como Ele cuidou de todos, com especial atenção aos que mais precisam. 
E não só por imperativo moral, que também é. Sobretudo porque não há outro modo de encontrar Cristo vivo, senão aí mesmo onde Ele nos espera: «Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolheste-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25, 35-36). Cada um destes lugares, como se configurarem agora, são outros tantos “lugares teológicos”, em que Cristo nos reclama. Quem não os frequentar, não encontrará o próprio Deus. Apenas se encontrará a si mesmo, entre ilusões e frustrações.
Daqui que, seja na Igreja doméstica de cada família, seja na comunidade cristã como “família de Deus” (Ef 2, 19), não haverá iniciação cristã autêntica sem simbiose total entre a palava ouvida, a oração filial e fraterna e a caridade realizada. Temos sempre de progredir neste rumo, não separando uma dimensão das outras. Trata-se, afinal, de ampliar em Igreja e reforçar em Cristo o que já sabemos das relações humanas, que não se realizam sem escuta mútua, sem entreajuda espiritual e sem resposta concreta às necessidades do outro.
Na sua recente encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, o Papa Francisco insiste também neste ponto: «… é importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos» (FT, 86). 
Nem todos fazemos tudo, na comunidade cristã e na missão de a alargar para além dela, como oferta de vida em Cristo. Mas não esqueçamos que vocações e carismas têm sempre em vista o bem comum, espiritual ou social que seja Uma comunidade em que não se acompanhem com atenção e gosto os progressos sacramentais de cada um, do Batismo ao Crisma, da Eucaristia à Reconciliação e à Unção dos enfermos, dos Matrimónios às Ordenações e Profissões religiosas, e em que não se ganhe o gosto de rezar cristãmente e celebrar em conjunto; ou em que não se assumam as iniciativas socio-caritativas como algo que nos interessa a todos, seja nos centros sociais e lares, seja nas cáritas ou nas conferências vicentinas – para mencionar as mais comuns – não inicia nem cresce, cristãmente falando.
Muito pelo contrário, quando integramos bem estas dimensões, através da comunicação e da corresponsabilidade, realizamo-nos como corpo eclesial de Cristo e assim mesmo nos alargamos em missão. Disse-o o Papa Francisco num passo muito sugestivo e mobilizador da sua exortação apostólica Gaudete et Exsultate, sobre o chamamento à santidade no mundo atual: «Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária» (GE, 142). Reparemos como junta Palavra, Eucaristia, fraternidade e missão. Quando falta um destes pontos, reduz-se e desdiz-se a autenticidade dos outros.
De modo ainda mais incisivo, escrevera o Papa na exortação apostólica Evangelii Gaudium – essa mesma que motivou o nosso percurso sinodal de Lisboa: «Qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução […]. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios» (EG, 207).
É uma advertência grave, que devemos tomar muito a sério e em permanente conversão socio-caritativa. Aliás, durante a atual pandemia, muitas comunidades e instituições se desdobraram em respostas às necessidades acrescidas da população, quer na distribuição de géneros alimentares e outros, quer em contactos com pessoas sós, quer no apoio a lares e a imigrantes. A pandemia vai passar, como sempre acontece – e tanto mais depressa quanto mais cautelosos e solidários formos. Mas esta ação redobrada não pode atenuar-se, não só porque muitas necessidades permanecem e muitas periferias subsistem, mas também porque só assim seremos, para nós e para os outros, sinal eloquente e experiência viva de Cristo no mundo.

A isto se liga o tema da “nova evangelização”, muito presente na vida da Igreja desde São João Paulo II, que a queria “nova no ardor, nos métodos e nas expressões”. A grande mudança social e cultural que vivemos requere-a certamente. Quer na maneira de viver e conviver, quer na concentração urbana e na mobilidade interurbana, quer na grande variedade de situações e percursos, quer nos novos modos de comunicar, aprender e trabalhar, tudo é diferente do que era ainda há pouco e pede-nos para anunciar o Evangelho de sempre na novidade do tempo. 
Também o Papa Francisco nos fala da “nova evangelização”. Um breve relance sobre algumas das suas afirmações neste sentido, faz-nos concluir que ela tem em conta as referidas mudanças sociais e culturais e se foca muito especialmente na atenção aos pobres, materiais ou espirituais que sejam. 
Logo no texto programático do seu pontificado, que assumimos convictamente para o nosso percurso sinodal de Lisboa, resume assim o quadro em que nos movemos: «Uma cultura inédita palpita e está em elaboração na cidade. O Sínodo [Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização, 2012] constatou que as transformações destas grandes áreas e a cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização. Isto requer imaginar espaços de oração e de comunhão com caraterísticas inovadoras, mais atraentes e significativas para as populações urbanas» (EG, 73).
«Imaginar espaços de oração e de comunhão», pede-nos o Papa. Reparemos que oração e comunhão andam ligadas, relacionando-nos com Deus e com os outros a partir de Deus. Percorrendo tantos lugares do nosso Patriarcado, verifico e agradeço o facto de não faltarem comunidades em que isto mesmo vai acontecendo na simplicidade do dia-a-dia, na vida litúrgica e na atenção aos pobres. Nem quero imaginar quanto perderíamos, como sociedade em geral, se não contássemos com a nossa rede paroquial e comunitária e a sua atividade catequética, litúrgica e socio-caritativa… 
Quando se fala em evangelização, só se pode defini-la no modo como Cristo a realizou, retomando “com novo ardor, novos métodos e novas expressões”, o sentido que Ele próprio lhe deu, ou seja, anunciar o Evangelho aos pobres, de toda a pobreza que seja e nas suas novas formas também. Isso mesmo acentua o Papa Francisco, afirmando que tal atitude, além de corresponder a uma necessidade indesmentível é também o único modo de encontrarmos realmente a Cristo, que neles nos espera: «A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas e a colocá-las no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles» (EG, 198). Concluamos que centralizar as periferias começa por estar atento a elas e tomá-las como lugar pessoal ou social onde Deus nos espera e reclama. 
Mas é muito mais do que simples voluntarismo. Falando-nos do “espírito da nova evangelização”, o Papa alia ação e oração, como um movimento de coração que leva à prática. Dizendo, entre muito mais, o seguinte: «Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração» (EG, 262).
De que transformação do coração se trata, explicará depois o Papa na bula Misericordiae Vultus, de proclamação do Jubileu da Misericórdia, que vivemos em 2015-2016. Escreveu assim: «No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral renovada. É determinante para a Igreja, e para a credibilidade do seu anúncio, que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos para penetrarem o coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente o caminho para regressar ao Pai, deve irradiar misericórdia. […] Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos -, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia» (MV, 12).
Reparemos bem na palavra “misericórdia” e no seu sentido mais profundo. Significa ter o coração no que é “mísero”, isto é, mais frágil e carente. Só assim coincidiremos com o próprio coração divino, como se revelou nos sentimentos e gestos de Jesus Cristo. Não fez grandes discursos sobre o tema, ainda que o tenha magnificamente ilustrado em parábolas como a do “pai misericordioso”, mais conhecida como do “filho pródigo” (cf. Lc 15, 11 ss). Não precisou de fazer grandes discursos, porque as suas atitudes falavam bem por si.
Concluamos: O “oásis de misericórdia” que cada comunidade deve ser, para se chamar legitimamente cristã, tanto responde à procura dos pobres como “localiza” a presença de Deus.     

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Torres Vedras, 15 de maio de 2021 

Patriarcado de Lisboa

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