23 maio 2021

Homilia na Solenidade de Pentecostes

 

 

Sabemo-lo nós, saibamo-lo para todos 

 
Caríssimos 

As festas que celebramos são de Deus e são nossas. Melhor, são de Deus para nós, como as oferece em Cristo. Concluímos hoje um grande percurso, das Cinzas com que começámos a Quaresma ao Pentecostes em que o Espírito do Ressuscitado fez de nós os anunciadores da sua Páscoa. 
É caso para agradecer muito a Deus. É caso para nos perguntarmos se tudo passou da grandeza da Palavra ouvida e da beleza dos ritos celebrados para o nosso coração convertido e ainda mais apaixonado por Cristo. Por Cristo e pelo Evangelho vivo que nos deixou, para o anunciarmos por palavras e obras.
Nada aconteceria só por nós, que continuaríamos «alienados da vida de Deus» (Ef 4, 18). Mas tudo sucede a partir d’Ele e só d’Ele, que nos recria em Cristo e nos preenche de Espírito. Hoje é dia de Pentecostes – e nunca mais deixará de ser, porque a única coisa que definitivamente acontece e perdura é Cristo e o corpo em que se expande através de nós: «a realidade está em Cristo», como bem sabia e esclarecia São Paulo (Col 2, 17).
Havia muita gente em Jerusalém naquele dia. Não só muita gente, mas provinda de muitos lados, como ouvimos no trecho dos Atos dos Apóstolos.
E aconteceu que, saindo para fora, os apóstolos foram por todos escutados e compreendidos na língua de cada um. E assim continuou a ser até agora, no Pentecostes que vivemos.
Também e por maioria de razões hoje em dia. Na altura, estavam muitos em Jerusalém, de várias proveniências que eram, mas ligados por um motivo comum, na fé do antigo Israel. Agora, na globalização em que vivemos, juntam-se na nossa cidade pessoas de muitas nações, para aqui habitarem algum tempo ou ficarem mais estavelmente – tanto quanto alguma coisa é estável hoje em dia, na demografia e não só.
Mais ainda: Na cidade antiga – e em Jerusalém especialmente – reuniam-se povos que compartilhavam uma base religiosa e cultural comum. Já não é assim, bem pelo contrário. Não só porque tal base se diluiu, dando lugar a uma geral indefinição de ideias, sentimentos e costumes, mas também por ser habitual que cada grupo reflua sobre si mesmo, no que lhe reste de identidade e convicção.
É algo que vai crescendo entre a indiferença e o atordoamento que se acumulam. Porém, para construir ou reconstruir uma cidade, no sentido comunitário do termo, é preciso bem mais do que um mercado de trabalho, ou a procura dele. Requer-se conhecimento mútuo, interpessoal e intercomunitário, mais difíceis hoje, tantas são as gentes, as intenções e a imparável mobilidade – física e mediaticamente impulsionada.
Requer-se vontade de partilhar o bem que nos coube, sem que uma tolerância mal entendida nos dispense de o oferecer aos outros. Tal seria meramente desinteresse. 

Porque é precisamente na dimensão interpessoal que a cidade pode acontecer. Não é por acaso, antes por sinal, que, desde a Antiguidade, as cidades ergueram monumentos a figuras de referência comum, nas quais a generalidade dos habitantes se revia. Era cidade de tal nome ou figura, como muitas se designaram por esse mundo além. 
O próprio cristianismo aconteceu desse modo, mesmo reorientado a atenção a tais figuras. Lembremos como São Paulo, aludindo às muitas imagens de deuses e heróis que povoavam Atenas, preferiu a que estava dedicada a um “deus desconhecido”, partindo daqui para anunciar o Deus de Jesus Cristo (cf. At 17, 23). 
Aquela Jerusalém do Pentecostes desapareceu daí a um século, arrasada pelos romanos, que sobre ela construíram outra, com diferente invocação. Entretanto, a pregação dos apóstolos anunciava “as maravilhas de Deus” – que se consubstanciavam num nome, o de Jesus, cuja morte e ressurreição confirmaram como salvador de todos. Um nome novo que iniciava a cidade nova, essa mesma em que tantos povos e nações se reuniram até hoje e onde nós próprios nos inscrevemos aqui.
Assim se passou da Olissipo romana à Lisboa portuguesa, de tantos “portugais” passados e outros em gestação, como se vão somando e entrecruzando, atingindo hoje uma centena de nacionalidades residentes. Entre tantos nomes de múltiplas línguas, continuamos nós a oferecer o de Jesus, como agregador comprovado e disponível de sentimentos, práticas e aspirações maiores. 
Sem que nada de humano se perca, com o que milénios de civilizações e culturas o acrescentam até hoje. Onde o essencial de várias heranças religiosas e humanitárias se podem incluir também, como o diz o próprio Jesus Cristo, num versículo de ouro: «Quem não é contra nós é por nós» (Mc 9, 40). 
É certo que algumas páginas da história nos lembram que o cristianismo pôde ser usado com outros critérios, demasiadamente temporais e muito pouco espirituais, esquecendo a distinção fundamental que Cristo fez: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (Mt 22, 21). Mas a divindade total que Cristo oferece não diminui, antes garante e potencia, a humanidade integral que cada um deve manter, no respeito pelo que se pode e deve decidir em consciência. Porém, mesmo nessas alturas, como depois delas, persistiu sempre o cristianismo essencial e disponível para edificar uma cidade em que caibam todos, onde o bem se promove em clima de liberdade religiosa autêntica e solidariedade humana reforçada. O bem é imediatamente compreensível e agregador, como o foi naquela primeira pregação de Pentecostes.

Mesmo que demoremos algum tempo.
Tanta verdade humano-divina, como a que Jesus nos trouxe, só paulatinamente é assimilada por todos nós em geral. Por isso ouvimos no Evangelho de há pouco: «Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos conduzirá para a verdade plena, porque não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará». Isso mesmo tem felizmente acontecido e creio que podemos compreender hoje, ainda mais e melhor, o que Deus nos ofereceu em Cristo.  
Porque, em Cristo, Deus ofereceu-nos aquela totalidade que só a pouco atingiremos como humanidade, conduzidos pelo Espírito que nos foi concedido e neste dia especialmente celebramos. A magnífica galeria dos santos, manifesta como em cada um deles o Espírito reproduziu a vida de Cristo para a oferecer ao mundo nas mais diversas circunstâncias temporais e socioculturais. Reparemos como, na relatividade do tempo de cada um, se foi manifestando e apurando o essencial cristão, que só no fim se revelará plenamente. 
Reparemos como muitos deles avultaram nos vários saberes humanos e sobretudo na grande caridade praticada. Nem precisamos de sair da história de Lisboa, no que teve de realmente cristão. Sim, em António, Joana de Portugal e Bartolomeu dos Mártires, em João de Brito ou Maria Clara, só para falar dos naturais daqui, a cidade encontrou, ainda jovens, outros tantos Pentecostes do Espírito. E aceitemos que o Espírito que neles operou tanto e tão bem, sopra realmente aonde quer (cf Jo 3, 8) e nos pode surpreender ainda mais.
Assim podemos e devemos colaborar na construção da cidade. Reconhecendo tudo o que de bom cada um transporte, na pluralidade de tradições e projetos que nos traga. E tendo bem presente a exortação de São Pedro à pequena comunidade cristã de Roma, muito limitada que estava num mundo tão diverso e já hostil: «no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantendo limpa a consciência, de modo que os que caluniam a vossa boa conduta em Cristo sejam confundidos, naquilo mesmo em que dizem mal de vós» (1 Pe 3, 15-16).
Palavras oportunas para o Pentecostes que havemos de cumprir hoje em dia. Ofereçamos Cristo à cidade que O espera. Sabemo-lo nós, saibamo-lo para todos.


Sé de Lisboa, 23 de maio de 2021


+ Manuel, Cardeal-Patriarca   
    

Patriarcado de Lisboa

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