Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor
Até ao fim
Caríssimos
Se ainda procurássemos o verdadeiro porquê desta celebração,
creio que não encontraríamos resposta mais cabal do que a ouvida no
começo do Evangelho de há pouco: «Antes da festa da Páscoa, sabendo
Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que
amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim».
Reparemos
que não se trata apenas de amar, mas de amar até ao fim. Dito de outro
modo, amar verdadeiramente requer entrega total ao bem dos outros,
fazendo da vida uma plena oferta. A vida de Jesus mostra-nos o que tal
significa, a sua cruz realizou-o inteiramente e a Eucaristia oferece-o a
cada um de nós.
São Paulo
assimilou tão plenamente esta verdade que a repetiu uma e outra vez nos
seus escritos. Como neste trecho, não hesitando em referir-nos à própria
realidade divina, assim mesmo demonstrada: «Sede, pois, imitadores de
Deus, como filhos bem-amados, e procedei com amor, como também Cristo
nos amou e se entregou a Deus por nós como oferta e sacrifício de
agradável odor» (Ef 5, 1-2). Sim, como dirá o Prefácio desta
Missa, «Cristo, nosso Senhor, verdadeiro e eterno sacerdote,
oferecendo-se como vítima de salvação, instituiu o sacrifício da nova
aliança e mandou que o celebrássemos em seu nome».
Jesus
passou deste mundo para o Pai, na circunstância precisa que o Sagrado
Tríduo relembra e medita, da traição do discípulo à morte na cruz. Mas
de tudo isso, que podia ser apenas uma grande derrota e um tristíssimo
desfecho, Jesus fez oferta de si mesmo por nós e por todos, inteiramente
entregue às mãos de Deus Pai. Mãos que no-lo devolveram como alimento
de vida eterna, essa mesma que preenche e salva a quem verdadeiramente a
receba.
A simpatia humana é algo de natural e espontâneo, na nossa humanidade comum.
Manifesta-se nas vidas que geram vidas, nos cuidados que se prestam e
na atenção ao bem do próximo. Mas também sentimos que não chega, quando
falta quem estava, o horizonte se ensombra, ou o mal parece vencer.
Significa
isto que os melhores sentimentos e vivências não conseguem atingir
quanto prometem e o nosso desejo mais profundo acaba por ficar sem
cumprimento, não atingindo o fim que pretendia. As circunstâncias
atuais, que afligem tanta gente por esse mundo além e aquém, dão lugar a
grandes deceções. Na verdade, com tanto bem que se pratica, tanto
contributo da ciência e do engenho humano, tanto sonho e ideal que nos
movem, porque havemos de ficar a meio caminho de nós próprios, ou mesmo
entre os escombros dos melhores propósitos?
-
Que nos resta então, a nós mortais? Os discípulos de Jesus celebram
hoje um amor que nos amou até ao fim e que desse modo preencheu de vida
divina o que a fraqueza humana extinguiria. E não por fora desta mesma
fraqueza, antes sofrendo-a até à morte e morte de cruz. Em tudo foi
igual a nós, no que sofreu, mas sempre com Deus Pai e assim vencendo.
Porque
nos amou até ao fim do percurso terreno que lhe truncaram de modo tão
injusto e tão cruel, nada ficou por acompanhar em cada um, no infindo
caminho em si aberto. Por isso celebramos e comungamos a vida que nos
deu, na Santíssima Ceia do seu corpo oferecido e do seu sangue
derramado.
Sim, caríssimos, se
estamos hoje aqui, celebrando a Missa Vespertina da Ceia do Senhor, é
unicamente porque Jesus nos amou até ao fim. Se o não tivesse atingido,
também não nos alcançaria a nós, humanidade de qualquer tempo e lugar,
sempre tão longe do que só com Ele poderá ser. Sabia-o São Paulo, ao
resumir a sua vida deste modo: «corro para ver se o alcanço, já que fui
alcançado por Cristo Jesus» (Fl 3, 12). Esta frase pode bem
traduzir o dinamismo eucarístico duma existência cristã propriamente
dita, da gratidão à entrega de si mesmo.
Duas consequências maiores daqui se tiram.
A primeira é que celebrar verdadeiramente a Eucaristia é acertar a vida
no ponto eucarístico a que Cristo chegou e donde nos chama agora e a
cada um. É entrar na lógica divina que assim se revelou. Em Jesus
Cristo, seu Verbo encarnado, Deus diz-se e comprova-se como vida
totalmente oferecida.
Foi este o
fim da revelação divina, para a tomarmos nós como finalidade da nossa
vida em Deus. Na sua cruz Cristo entregou-se às mãos do Pai, na
Eucaristia devolvemo-nos com Ele a Quem nos espera a nós também. Não
celebramos muitas Missas, celebramos cada vez melhor a única de Cristo,
sacramentalmente reiterada, para que o mesmo propósito se realize até ao
fim.
A outra consequência
necessária é a que Pedro aprendeu no lava-pés, como há pouco ouvimos,
dando-lhe o sentido que aprenderia depois: «Senhor, então não somente os
pés, mas também as mãos e a cabeça». Não se tratava de limpeza exterior
e fácil de conseguir. Trata-se da renovação inteira que só em Cristo se
alcança. Em Cristo e precisamente no seu amor comprovado “até ao fim”,
refazendo-nos com a sua vida entregue, convertendo toda a boa vontade
humana na absoluta caridade divina.
Nenhum
de nós se abeire da Eucaristia para continuar como está ou se garantir
como deseja de si e só para si. Tudo isso seria muito pouco e mesmo
ingratidão. A Eucaristia é a entrega total de Cristo pela totalidade que
havemos de atingir com Ele, para glória de Deus e bem dos outros. Tudo
nela é sacramento e sinal da ressurreição que só desse modo nos chega,
pois com Cristo nos oferecemos a Deus e com Cristo nos devolvemos a
todos, ampliando a Missa em missão.
A
Eucaristia é a memória viva e vivificante da oferta que Jesus nos fez
de si mesmo e nunca pode ser menos do que isso, para ser autêntica e
salutar. Lembrou-o também São Paulo: «Na verdade, todas as vezes que
comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do
Senhor, até que Ele venha».
Vivemos
duma vida entregue, comunguemo-la inteiramente gratos e manifestemo-la
em correspondência total. Não fiquemos a meio do caminho que Ele quer
percorrer, connosco e em nós, até ao fim!
Sé de Lisboa, 14 de abril de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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