03 abril 2022

O Papa: "Não aprendemos, estamos apaixonados pelas guerras e pelo espírito de Caim"

 
  Papa Francisco, conferência de imprensa (Foto de arquivo)  (Vatican Media) 
 
No diálogo com os jornalistas no voo de retorno de Malta, Francisco respondeu a perguntas sobre a possibilidade de uma viagem a Kiev e sobre o horror da guerra.
 

Vatican News

"Não aprendemos! Que o Senhor tenha piedade de nós, de todos nós, todos nós somos culpados"! O Papa Francisco com os jornalistas no voo de retorno de Malta, depois de recordar o que o impressionou sobre o acolhimento na ilha, retorna a falar sobre a guerra.

Andrea Rossitto (TVM)

Obrigado pela sua presença em Malta. A minha pergunta é sobre a surpresa desta manhã na capela onde está enterrado S. Giorgio Preca. O que o motivou a fazer esta surpresa aos malteses e o que se recordará desta visita a Malta. E ainda, como está a sua saúde? Nós vi-mo-lo durante esta viagem muito intensa. Correu tudo bem, digamos. Muito obrigado.

A minha saúde é um pouco caprichosa, tenho este problema com o meu joelho que traz problemas na caminhada,  é um pouco chato, mas está a melhorar, pelo menos posso andar. Há duas semanas atrás, eu não podia fazer nada.  É uma coisa lenta, vamos ver se melhora, mas há a dúvida de que nesta idade não se sabe como isto vai acabar, vamos esperar que corra tudo bem. E depois sobre Malta: fiquei feliz com a visita, vi as realidades de Malta, vi um entusiasmo impressionante do povo, tanto em Gozo, como em Malta La Valletta e nos outros lugares. Um grande entusiasmo nas ruas surpreendeu-me, foi um pouco breve, o problema que eu vi e que é também para vós é a migração. O problema dos migrantes é sério Médio Oriente e aterram aqui, eles chegam aqui, os migrantes devem se acolhidos sempre!

O problema é que cada governo tem que dizer quantos podem receber normalmente para viver ali. Para isto é preciso um acordo com os países da Europa e nem todos estão dispostos a receber os migrantes. Esquecemos que a Europa foi feita por migrantes, certo? Mas é assim que as coisas são, mas pelo menos não deixar todo o peso para os países vizinhos que são tão generosos, e Malta é um deles. Hoje estive no centro de acolhimento de migrantes e as coisas que ouvi lá são terríveis, o sofrimento dessas pessoas para chegar aqui e depois os lagers, há lagers, que estão na costa líbica, quando são mandadas de volta. Isto parece criminoso, não parece? É por isso que eu acho que é um problema que toca o coração de todos. Assim como a Europa está a abrir espaço tão generosamente para os ucranianos que batem à porta, também para os outros que vêm do Mediterrâneo. Este é um ponto com o qual terminei a visita e tocou-me muito, porque ouvi os testemunhos, os sofrimentos que são mais ou menos como aqueles que eu acho que lhes disse estarem naquele pequeno livro que saiu, "Hermanito" em espanhol, "Irmãozinho", e toda a Via-Sacra destas pessoas. Um que falou hoje teve que pagar quatro vezes, peço-lhes que pensem sobre isto. Obrigado 

Jorge Antelo Barcia (RNA)

No voo que nos levou a Malta, o senhor disse a um colega que uma viagem a Kiev estava sobre a mesa e já em Malta fez referências à sua proximidade ao povo ucraniano, e na sexta-feira em Roma o presidente da Polónia deixou a porta aberta para uma viagem à fronteira daquele país. Hoje ficamos impressionados com as imagens vindas de Bucha, uma localidade perto de Kiev, abandonada pelo exército russo, onde os ucranianos encontraram dezenas de cadáveres jogados na rua, alguns com as mãos atadas, como se tivessem sido "executados". Parece que hoje a sua presença ali seja cada vez mais necessária. O senhor acha que uma viagem como esta é possível? E quais as condições que teriam que ser cumpridas para que o senhor possa lá ir?

Obrigado por me dar esta notícia de hoje que eu ainda não sabia. A guerra é sempre uma crueldade, uma coisa desumana, que vai contra o espírito humano, eu não digo cristão, humano. É o espírito de Caim, o espírito 'Caimista'... Estou disposto a fazer tudo o que precisa de ser feito, e a Santa Sé, especialmente o lado diplomático, o cardeal Parolin e dom Gallagher, estão a fazer tudo, mas tudo, não se pode publicar tudo o que eles fazem, por prudência, por confidencialidade, mas estamos no limite do nosso trabalho. Entre as possibilidades está a viagem: há duas viagens possíveis: uma dela pediu-me o presidente da Polónia para enviar o cardeal Krajewski a visitar os ucranianos que foram recebidos na Polónia. Ele já foi duas vezes, levou duas ambulâncias e ficou com eles, mas fará isso noutra ocasião, ele está disposto a fazer isto. A outra viagem que alguém me perguntou, mais de um, eu disse com sinceridade que tinha em mente fazê-la, que há sempre a minha disponibilidade, não há o não, eu estou disponível. O que pensa sobre uma viagem, a pergunta era assim: "ouvimos dizer que o senhor estava a pensar numa viagem à Ucrânia", eu respondi que ela está sobre a mesa, está ali como uma das propostas que chegaram, mas não sei se poderá ser feita, se é conveniente fazê-la e se seria para o melhor ou se é conveniente fazê-la e devo fazê-la, tudo isto está no ar. Depois há tempo, se tinha pensado num encontro com o Patriarca Kirill, se está a trabalhar para isto, se está a trabalhar, se está a pensar no Médio Oriente para fazê-lo, estas são as coisas como elas são agora.

Gerry O’Connel (America Magazine)

Durante esta viagem, o senhor várias vezes falou da guerra. A pergunta que todos fazem desde o início da guerra é se o senhor falou com o presidente Putin, e se não, o que lhe diria hoje?  

As coisas que disse às autoridades de cada lado são públicas. Nada do que disse é reservado para mim. Quando falei com o Patriarca, ele fez depois uma bela declaração daquilo que dissemos. Falei com o presidente da Rússia no final do ano, quando ele me ligou para as felicitações. Falei duas vezes com o presidente da Ucrânia. Depois, no primeiro dia de guerra pensei que deveria ir à embaixada russa para falar com o embaixador, que é o representante do povo e fazer minhas perguntas, apresentando as minhas impressões sobre o caso. Estes foram os contatos oficiais que tive. Com a Rússia, fiz através da embaixada. Também falei com o arcebispo-mor de Kiev, Dom Schevchuck. Falei ainda com regularidade em cada dois ou três dias com um de vós, Elisabetta Piqué, que estava em Lviv e agora está em Odessa. Ela me diz como estão as coisas. Falei também com o reitor do seminário. Mas como disse, estou em contacto também com um de vós. Falando deste tema, gostaria de dar os meus pêsames pelos vossos colegas que morreram. Estejam de que parte estejam, não interessa. Mas ovosso trabalho é pelo bem comum e essas pessoas morreram ao serviço do bem comum. Pela informação. Não nos esqueçamos deles. Foram corajosos e eu rezo por eles para que o Senhor lhes dê o prémio pelo seu trabalho. Estes foram os contactos feitos até agora.

Mas qual seria a mensagem para Putin se tivesse a possibilidade (de falar com ele)?

As mensagens que dei a todas as autoridades são as que fiz publicamente. Não tenho linguagem dupla. Faço sempre o mesmo. Creio que na sua pergunta exista também uma dúvida sobre guerras justas e injustas. Toda guerra nasce de uma injustiça, sempre. Porque há o esquema da guerra. Não há o esquema da paz. Por exemplo, fazer investimentos para comprar as armas. Dizem: mas precisamos delas para nos defender. Este é o esquema da guerra. Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, todos respiraram o “nunca mais a guerra” e a paz. Começou uma onda de trabalho pela paz também com a boa vontade de não dar as armas, as armas atómicas naquele momento, pela paz, depois de Hiroshima e Nagasaki. Havia uma grande boa vontade.

Setenta anos depois, esquecemos tudo isto. É assim que o esquema da guerra se impõe. Havia muitas esperanças no trabalho das Nações Unidas, na época. Mas o esquema de guerra impôs-se mais uma vez. Nós não podemos pensar noutro esquema, não estamos mais acostumados a pensar no esquema da paz. Houve grandes personagens, como Ghandi e outros que menciono no final da encíclica “Fratelli tutti”, que apostaram no esquema da paz. Mas nós fomos teimosos como humanidade. Somos apaixonados pelas guerras, pelo espírito de Caim. Não por acaso, no início da Bíblica há este problema: o espírito “caimista” de matar ao contrário do espírito da paz. Pai, não se pode! Conto algo pessoal de quando estive em 2014 em Redipuglia e vi os nomes dos jovens, eu chorei. Realmente chorei de amargura. Depois, um ou dois anos depois, para o dia de Finados fui celebrar em Anzio e vi os nomes dos jovens mortos ali. Todos jovens e também ali chorei. Realmente. É preciso chorar sobre os túmulos. Há algo que respeito porque existe um problema político. Quando houve a celebração do desembarque na Normandia, os chefes de Estado reuniram-se para comemorar. Mas não me lembro se alguém citou os 30 mil jovens que ficaram ali na praia. A juventude não conta. Isto faz-me pensar. Estou entristecido. Não aprendemos. Que o Senhor tenha piedade de nós, de todos nós. Todos somos culpados!

VN

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