Grande
clamor e indignação suscitou a proposta (entretanto retirada) da
Comissão Europeia de aconselhar/proibir aos seus funcionários a menção
do Natal nos tradicionais votos próprios da quadra respetiva, para desse
modo respeitar quem, nas agora multiculturais sociedades europeias, não
se reconhece no cristianismo. Uma proposta que nem chegou a ver a luz
do dia, mas que foi suficiente para criar em muitos ainda mais
desconfiança sobre o rumo que está a tomar o projeto de unidade
europeia.
Uma observação que deve
ser suscitada por tal proposta tem a ver com as razões pelas quais se
justifica celebrar o Natal, mesmo para quem não creia em Jesus Cristo
como Deus feito homem e no seu nascimento como manifestação do supremo
amor de Deus pela humanidade. Esse nascimento e as transformações
provocadas pelo cristianismo marcaram a história da humanidade em muitos
âmbitos e não é por acaso que uma boa parte desta passou a dividir o
tempo em duas eras: antes e depois de Cristo (no entanto, também há quem
pretenda designar como “era comum” o período até agora designado como
“depois de Cristo”).
O
historiador Jaroslav Pelikan salientou que a alteração do calendário é
um indício de que «ninguém pode escapar ao facto de que Jesus de Nazaré
alterou para sempre a história do mundo». Isso pode ser verificado por
um observador externo, independentemente da sua adesão à fé cristã.
Assim, num célebre artigo escrito em 1942 (com o título Perché non possiamo non dirci cristiani),
o filósofo italiano laico Benedetto Croce considerava o advento do
cristianismo «a maior revolução da história da humanidade», diante da
qual todas as outras revoluções são particulares e limitadas, com que
não têm paralelo a revolução grega do pensamento e a revolução romana do
direito, e da qual dependem as revoluções modernas. É assim porque se
trata de uma revolução que opera «no centro da alma, na consciência
moral». E – afirma ainda este pensador laico – é uma revolução «tão
abrangente e profunda, tão fecunda de consequências, tão inesperada e
irresistível no seu atuar, que não é de admirar que possa parecer um
milagre, uma revelação do Alto, uma intervenção direta de Deus nas
coisas humanas». Essa revolução centra-se no amor para com todas as
pessoas, sem distinção de classes, livres e escravos, e no amor para com
Deus, que é o Deus de amor e está próximo de todas as pessoas. E
acrescenta ainda Benedetto Croce: «As revoluções e descobertas que se
seguiram nos tempos modernos, na medida em que envolveram todo o ser
humano, a sua própria alma, não podem ser pensadas sem a revolução
cristã, numa relação de dependência com ela, à qual cabe o primado,
porque o impulso originário foi e continua a ser seu».
Muitos
fenómenos hoje impensáveis, ou quase unanimemente condenadas, não o
eram antes dessa revolução. Nem sempre disso nos apercebemos, tão
habituados que estamos a determinadas formas de sentir e reagir. É
verdade que essas transformações não se deram de um dia para o outro e
que os cristãos muitas vezes não foram coerentes (às vezes
inconscientemente, outras não) com as implicações da mensagem que
receberam e pretendiam transmitir. E também é verdade que essas
implicações estão hoje ainda longe de estar esgotadas, como
constantemente podemos verificar. Mas também por isso deve continuar a
ser celebrado o nascimento de Jesus Cristo, porque esse nascimento não
só marcou a história da humanidade, como deve continuar a marcá-la.
De
entre os fenómenos hoje impensáveis ou quase unanimemente condenados,
mas frequentes e geralmente aceites em várias sociedades pré-cristãs,
podem destacar-se: o infanticídio e o abandono de crianças à nascença,
especialmente quando atingidas por alguma deficiência; o abandono de
idosos e doentes (os hospitais e a assistência aos doentes, como hoje as
conhecemos eram desconhecidos na Roma antiga); a morte de pessoas
humanas como motivo de divertimento (nas lutas de gladiadores); a
poligamia e várias formas de “coisificação” da mulher; os sacrifícios
humanos oferecidos aos deuses; a deificação do titular supremo do poder
político (por isso, não sujeito a qualquer limitação); a escravatura (a
que em muitos casos estava sujeita a maioria da população, como na
Grécia, “pátria da democracia”); o desprezo para com os pobres; ou o
desprezo para com o trabalho manual. Alguns episódios emblemáticos podem
ser, a este respeito evocados: a forma como os cristãos no Império
Romano se aproximavam e cuidavam das vítimas da peste (o que suscitava
admiração por contrastar abertamente com a atitude de abandono dessas
vítimas, então corrente); ou as palavras de São Paulo a Filémon,
exortando-o a tratar o seu escravo como um irmão (sem diretamente
contestar juridicamente a escravatura, colocava assim a base que, no
plano dos princípios éticos, haveria de implicar a sua abolição). Afirma
o escritor luterano Alvin Schimdt, no livro How Christianity Changed the World,
(Zondervan, 2004) que quando hoje alguém, independentemente da sua fé,
de forma espontânea, não fica indiferente e revela compaixão para com as
vítimas de tragédias humanas (catástrofes naturais, massacres, guerras
ou fome), a essa reação não é indiferente a influência de dois mil anos
de cristianismo.
Não há,
pois, dúvida de que o nascimento de Jesus Cristo marcou a história da
humanidade e que esta seria bem diferente se Ele não tivesse nascido. E
também que esse nascimento e a mensagem que trouxe deverá continuar a
marcar essa história, pois o seu potencial transformador está longe de
estar esgotado. Mas é assim também porque a verdade é que alguns dos
fenómenos acima mencionados que, por influência do cristianismo, têm
sido unanimemente condenados já não o são hoje tão claramente. Estou a
pensar no fenómeno seguinte.
Na
Roma pré-cristã eram frequentes o infanticídio e o abandono de
crianças, em especial das portadoras de alguma deficiência. Neste
contexto, a “revolução cristã” atuou “contra a corrente” e contribuiu
decisivamente para pôr termo a essa prática. Na célebre Carta a Diogneto,
que por volta do ano 120 d.C. retratava os cristãos da época, a recusa
do abandono de recém-nascidos era indicada como algo que os distinguia
no ambiente que os rodeava. Não posso deixar de pensar, a este respeito,
por contraste e no contexto atual, no exemplo do aborto, especialmente o
que vitima nascituros portadores de deficiência, como a trissomia 21.
Em muitos países é o que sucede em mais de 90% das gravidezes em que
esta doença é detetada e alguns têm mesmo como objetivo atingir a meta
dos 100%. Esta é uma notória regressão civilizacional, decorrente da
negação do legado daquela a que Benedetto Croce chamou «a maior
revolução da história da humanidade».
Pedro Vaz Patto
Coordenador do Conselho Pastoral Diocesano
e Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
* Este texto foi publicado no site "No Barco de Cristo"
Fotografia: Paulo Berberth
Patriarcado de Lisboa
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