A psicóloga
Rute Agulhas e o magistrado e ex-Procurador Geral da República José
Souto de Moura, membros da Comissão de Proteção de Menores do
Patriarcado, em entrevista ao Jornal Voz da Verdade, defendem a aposta
na “prevenção primária do abuso sexual” e o fim do “encobrimento dos
casos”.
Rute Agulhas
A “prevenção primária do abuso sexual” é uma “área em que se deve apostar”
A
psicóloga Rute Agulhas analisa a criação das comissões diocesanas de
proteção de menores em Portugal, que “devem sensibilizar a comunidade
católica” para o problema, e reconhece, na sociedade, “um caminho
positivo, de maior sensibilização e foco na prevenção, sinalização e
intervenção”. Ao Jornal VOZ DA VERDADE, esta profissional enumera ainda
alguns materiais específicos que podem contribuir para a prevenção dos
abusos.
O caminho percorrido pela
Igreja, nos últimos anos, no que diz respeito ao assunto da proteção de
menores, está, visivelmente, a ter consequências práticas, começando
pela criação das comissões diocesanas – como aconteceu em Lisboa, em
abril de 2019. Como analisa o caminho feito pela Igreja e, concretamente
com a criação da comissão de proteção de menores a que pertence?
Penso
que, durante muitos e muitos anos, este foi um caminho que se fez de
forma tímida e lenta. Mais recentemente, em fevereiro de 2019, a cimeira
[sobre a proteção de crianças e abusos sexuais na Igreja que reuniu os
presidentes de todas as conferências episcopais] realizada no Vaticano
marcou o ritmo e permitiu identificar diversos pontos de reflexão,
conduzindo à criação, em Portugal, de diversas Comissões de Proteção de
Menores. Integro a Comissão do Patriarcado de Lisboa e entendo que estas
Comissões devem colaborar com as Dioceses na definição de orientações e
procedimentos a adotar para a prevenção e intervenção face a situações
que possam configurar abuso sexual de crianças, por parte de membros do
clero ou praticadas no âmbito da atividade de pessoas jurídicas
canónicas. Norteadas desta forma, devem sensibilizar a comunidade
católica para a problemática dos abusos sexuais e desenvolver programas e
materiais de prevenção primária. Ao mesmo tempo, ajudar a aumentar
competências na comunidade para identificar, escutar e encaminhar uma
suspeita ou revelação de abuso sexual, definindo, para tal, um
fluxograma de intervenção com procedimentos claros e objetivos. Em
paralelo, deverão ser definidas estratégias de reparação do dano junto
das vítimas e das suas famílias. Por fim, entendo ser imprescindível a
sistematização de procedimentos de intervenção com os agressores
sexuais, a par da sua responsabilização legal.
Diria,
assim, que estas Comissões pretendem ajudar a proteger, diminuir
sequelas, aumentar competências e prevenir recidivas, não se
substituindo nunca às entidades legalmente competentes para o efeito.
A
Cimeira que se realizou no Vaticano foi a semente que tem agora de
germinar em cada país. Em Portugal, a semente está lançada e precisa
agora de crescer. Exige-se a estas Comissões a reflexão necessária sobre
cada um destes aspetos, de modo a operacionalizá-los e a promover,
efetivamente, espaços seguros e saudáveis para o crescimento de todas as
crianças. Sem abusos sexuais ou de qualquer outra natureza.
Tem
mais de 20 anos de experiência profissional e, uma parte deles,
dedicados ao estudo e acompanhamento de crianças e jovens em risco. A
partir da sua experiência, considera que existe uma nova forma de olhar
para este problema, até além da realidade eclesial? O que ainda falta
fazer?
Comecei a trabalhar em
1998 com situações de abuso sexual, acompanhando as vítimas e as suas
famílias, bem como agressores sexuais. Ao longo destes quase 24 anos,
muitas têm sido as mudanças na nossa sociedade, existindo hoje um maior
reconhecimento da problemática que, de forma progressiva, tem vindo a
constituir-se como um assunto menos tabu. Há alguns anos, era ainda
muito frequente ouvir-se que “na nossa escola não existem abusos” ou
“esse é um problema das cidades grandes, não das terras pequenas”.
Apesar de ainda assistirmos hoje a algumas reações de negação do
problema, especialmente quando este ocorre no seio da família ou por
parte de pessoas mais próximas, diria que estamos a traçar um caminho
positivo, de maior sensibilização e foco na prevenção, sinalização e
intervenção.
Sobre o que ainda
falta fazer, penso que a aposta deve ser na prevenção primária
universal e na intervenção terapêutica junto dos agressores sexuais, as
duas áreas mais a descoberto nos dias de hoje.
José Souto de Moura
Abusos “devem ser combatidos onde quer que ocorram”
Magistrado
e ex-Procurador Geral da República, José Souto de Moura deseja que o
encobrimento dos casos de abusos deixe, “de vez, de ter lugar”, “a
começar pelo domínio familiar”. Em entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE,
este membro da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa
apela a que cada sector social da sociedade, como os órgãos de
comunicação, a “dar o seu contributo” no combate a este “flagelo”.
A
partir da sua experiência como magistrado, que mudanças significativas
foi observando para que, atualmente, a sociedade olhe com maior atenção
para os casos de abusos de menores?
Parece-me
claro que, de há décadas, a cultura largamente dominante de manter no
domínio privado tudo o que se relacionasse com abusos cometidos na área
sexual, sofreu alterações importantes. Tudo no sentido de haver menos
obstáculos à sua revelação, e essa é uma tendência que vai a par com um
alargamento da criminalização de comportamentos no sector.
No
caso português, as previsões penais dos art.s 171º a 179º do Código
Penal (crimes contra a autodeterminação sexual), integram dos sectores
com mais alterações, depois de o Código ter entrado em vigor em 1982.
Podemos referir como mais recentes as de 1995, 2007 ou de 2015. Tudo no
sentido do endurecimento da reação ou da eficácia do procedimento contra
os arguidos abusadores de menores e adultos vulneráveis. Outro sector
onde se ganhou, em paralelo, uma sensibilidade nova, como é sabido, é o
da violência doméstica.
Estamos
perante uma evolução cultural que atende à necessidade acrescida de
proteção dos mais vulneráveis, que acompanha uma menor iliteracia e a
subida do nível de vida da população em geral, um investimento no ensino
acrescido, a progressiva emancipação da condição feminina, uma maior
naturalidade em encarar temáticas sexuais, etc., etc. No fundo, há um
progresso civilizacional efetivo, de pendor humanitário e maior justiça.
Sociologicamente, parece-me que quanto menos um mal existe mais custa a
suportar o que dele resta. E ainda bem.
Quanto
à minha experiência como magistrado, não disponho aqui de dados
estatísticos que confortem a minha convicção, mas parece-me irrecusável
que os Tribunais conheceram o impacto deste estado de coisas, com mais
processos-crime para julgar. E não posso deixar de referir que o caso
Casa Pia de 2003 (já antes se tinham arquivado outros dois), pode ter
tido influência.
Depois de ter
procurado acompanhar o processo, quando era Procurador-Geral, já como
juiz numa Secção Penal do Supremo Tribunal de Justiça fui confrontado
com vários recursos relacionados com o tema em causa, e via serem
distribuídos mais processos do que aquilo que esperava, em matéria de
abusos de menores.
O
exemplo da Igreja, ao criar comissões de proteção de menores – como a de
Lisboa, à qual pertence –, deverá ser também seguido por outros setores
da sociedade?
Claro que, se
os abusos dos menores e adultos vulneráveis são um mal intolerável,
devem ser combatidos onde quer que ocorram. A começar pelo domínio
familiar.
É sabido que o maior
número de abusos ocorre, de longe, dentro das famílias ou
protagonizados por amigos das famílias. Seria bom que o encobrimento dos
casos deixasse de vez, de ter lugar, nessa área. Mas claro que se as
situações problemáticas têm lugar dentro de instituições ou organizações
que nada têm a ver com a Igreja, competirá aos respetivos responsáveis
reagir.
A voz do Papa
Francisco foi essencial, continua a ser, no sentido da intransigência
com os abusos dentro da Igreja, esta acusada de silenciamento no
passado. Mas é evidente que aquela voz pode e deve ser ouvida por todos.
Não para arvorar a Igreja em exemplo, mas para despertar a consciência
de todos.
- Leia as entrevistas completas na edição do dia 16 de janeiro do Jornal VOZ DA VERDADE, disponível nas paróquias ou em sua casa.
Patriarcado de Lisboa
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