13 janeiro 2022

Abusos: “Foco na prevenção”

 
 

A psicóloga Rute Agulhas e o magistrado e ex-Procurador Geral da República José Souto de Moura, membros da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado, em entrevista ao Jornal Voz da Verdade, defendem a aposta na “prevenção primária do abuso sexual” e o fim do “encobrimento dos casos”.


Rute Agulhas

A “prevenção primária do abuso sexual” é uma “área em que se deve apostar”

A psicóloga Rute Agulhas analisa a criação das comissões diocesanas de proteção de menores em Portugal, que “devem sensibilizar a comunidade católica” para o problema, e reconhece, na sociedade, “um caminho positivo, de maior sensibilização e foco na prevenção, sinalização e intervenção”. Ao Jornal VOZ DA VERDADE, esta profissional enumera ainda alguns materiais específicos que podem contribuir para a prevenção dos abusos.

O caminho percorrido pela Igreja, nos últimos anos, no que diz respeito ao assunto da proteção de menores, está, visivelmente, a ter consequências práticas, começando pela criação das comissões diocesanas – como aconteceu em Lisboa, em abril de 2019. Como analisa o caminho feito pela Igreja e, concretamente com a criação da comissão de proteção de menores a que pertence?
Penso que, durante muitos e muitos anos, este foi um caminho que se fez de forma tímida e lenta. Mais recentemente, em fevereiro de 2019, a cimeira [sobre a proteção de crianças e abusos sexuais na Igreja que reuniu os presidentes de todas as conferências episcopais] realizada no Vaticano marcou o ritmo e permitiu identificar diversos pontos de reflexão, conduzindo à criação, em Portugal, de diversas Comissões de Proteção de Menores. Integro a Comissão do Patriarcado de Lisboa e entendo que estas Comissões devem colaborar com as Dioceses na definição de orientações e procedimentos a adotar para a prevenção e intervenção face a situações que possam configurar abuso sexual de crianças, por parte de membros do clero ou praticadas no âmbito da atividade de pessoas jurídicas canónicas. Norteadas desta forma, devem sensibilizar a comunidade católica para a problemática dos abusos sexuais e desenvolver programas e materiais de prevenção primária. Ao mesmo tempo, ajudar a aumentar competências na comunidade para identificar, escutar e encaminhar uma suspeita ou revelação de abuso sexual, definindo, para tal, um fluxograma de intervenção com procedimentos claros e objetivos. Em paralelo, deverão ser definidas estratégias de reparação do dano junto das vítimas e das suas famílias. Por fim, entendo ser imprescindível a sistematização de procedimentos de intervenção com os agressores sexuais, a par da sua responsabilização legal.
Diria, assim, que estas Comissões pretendem ajudar a proteger, diminuir sequelas, aumentar competências e prevenir recidivas, não se substituindo nunca às entidades legalmente competentes para o efeito. 
A Cimeira que se realizou no Vaticano foi a semente que tem agora de germinar em cada país. Em Portugal, a semente está lançada e precisa agora de crescer. Exige-se a estas Comissões a reflexão necessária sobre cada um destes aspetos, de modo a operacionalizá-los e a promover, efetivamente, espaços seguros e saudáveis para o crescimento de todas as crianças. Sem abusos sexuais ou de qualquer outra natureza. 

Tem mais de 20 anos de experiência profissional e, uma parte deles, dedicados ao estudo e acompanhamento de crianças e jovens em risco. A partir da sua experiência, considera que existe uma nova forma de olhar para este problema, até além da realidade eclesial? O que ainda falta fazer?
Comecei a trabalhar em 1998 com situações de abuso sexual, acompanhando as vítimas e as suas famílias, bem como agressores sexuais. Ao longo destes quase 24 anos, muitas têm sido as mudanças na nossa sociedade, existindo hoje um maior reconhecimento da problemática que, de forma progressiva, tem vindo a constituir-se como um assunto menos tabu. Há alguns anos, era ainda muito frequente ouvir-se que “na nossa escola não existem abusos” ou “esse é um problema das cidades grandes, não das terras pequenas”. Apesar de ainda assistirmos hoje a algumas reações de negação do problema, especialmente quando este ocorre no seio da família ou por parte de pessoas mais próximas, diria que estamos a traçar um caminho positivo, de maior sensibilização e foco na prevenção, sinalização e intervenção. 
Sobre o que ainda falta fazer, penso que a aposta deve ser na prevenção primária universal e na intervenção terapêutica junto dos agressores sexuais, as duas áreas mais a descoberto nos dias de hoje.


José Souto de Moura

Abusos “devem ser combatidos onde quer que ocorram”

Magistrado e ex-Procurador Geral da República, José Souto de Moura deseja que o encobrimento dos casos de abusos deixe, “de vez, de ter lugar”, “a começar pelo domínio familiar”. Em entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE, este membro da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa apela a que cada sector social da sociedade, como os órgãos de comunicação, a “dar o seu contributo” no combate a este “flagelo”.

A partir da sua experiência como magistrado, que mudanças significativas foi observando para que, atualmente, a sociedade olhe com maior atenção para os casos de abusos de menores?
Parece-me claro que, de há décadas, a cultura largamente dominante de manter no domínio privado tudo o que se relacionasse com abusos cometidos na área sexual, sofreu alterações importantes. Tudo no sentido de haver menos obstáculos à sua revelação, e essa é uma tendência que vai a par com um alargamento da criminalização de comportamentos no sector.
No caso português, as previsões penais dos art.s 171º a 179º do Código Penal (crimes contra a autodeterminação sexual), integram dos sectores com mais alterações, depois de o Código ter entrado em vigor em 1982. Podemos referir como mais recentes as de 1995, 2007 ou de 2015. Tudo no sentido do endurecimento da reação ou da eficácia do procedimento contra os arguidos abusadores de menores e adultos vulneráveis. Outro sector onde se ganhou, em paralelo, uma sensibilidade nova, como é sabido, é o da violência doméstica.
Estamos perante uma evolução cultural que atende à necessidade acrescida de proteção dos mais vulneráveis, que acompanha uma menor iliteracia e a subida do nível de vida da população em geral, um investimento no ensino acrescido, a progressiva emancipação da condição feminina, uma maior naturalidade em encarar temáticas sexuais, etc., etc. No fundo, há um progresso civilizacional efetivo, de pendor humanitário e maior justiça. Sociologicamente, parece-me que quanto menos um mal existe mais custa a suportar o que dele resta. E ainda bem.  
Quanto à minha experiência como magistrado, não disponho aqui de dados estatísticos que confortem a minha convicção, mas parece-me irrecusável que os Tribunais conheceram o impacto deste estado de coisas, com mais processos-crime para julgar. E não posso deixar de referir que o caso Casa Pia de 2003 (já antes se tinham arquivado outros dois), pode ter tido influência.
Depois de ter procurado acompanhar o processo, quando era Procurador-Geral, já como juiz numa Secção Penal do Supremo Tribunal de Justiça fui confrontado com vários recursos relacionados com o tema em causa, e via serem distribuídos mais processos do que aquilo que esperava, em matéria de abusos de menores.
O exemplo da Igreja, ao criar comissões de proteção de menores – como a de Lisboa, à qual pertence –, deverá ser também seguido por outros setores da sociedade?
Claro que, se os abusos dos menores e adultos vulneráveis são um mal intolerável, devem ser combatidos onde quer que ocorram. A começar pelo domínio familiar. 
É sabido que o maior número de abusos ocorre, de longe, dentro das famílias ou protagonizados por amigos das famílias. Seria bom que o encobrimento dos casos deixasse de vez, de ter lugar, nessa área. Mas claro que se as situações problemáticas têm lugar dentro de instituições ou organizações que nada têm a ver com a Igreja, competirá aos respetivos responsáveis reagir. 
A voz do Papa Francisco foi essencial, continua a ser, no sentido da intransigência com os abusos dentro da Igreja, esta acusada de silenciamento no passado. Mas é evidente que aquela voz pode e deve ser ouvida por todos. Não para arvorar a Igreja em exemplo, mas para despertar a consciência de todos.

  • Leia as entrevistas completas na edição do dia 16 de janeiro do Jornal VOZ DA VERDADE, disponível nas paróquias ou em sua casa.

Patriarcado de Lisboa

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