02 janeiro 2023

Homilia na Missa de sufrágio de Bento XVI

 

 

Vivamos agora do seu muito fruto

«Os que tiverem levado muitos aos caminhos da justiça brilharão como estrelas com um esplendor eterno» - é uma garantia do Livro de Daniel e creio aplicar-se muito bem ao Papa Bento XVI, que sufragamos nesta Missa.

Sobre a justiça diz-nos o Catecismo da Igreja Católica ser «a virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se “virtude da religião”. Para com os homens, a justiça leva a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem comum» (nº 1807).

Creio que o percurso pessoal e pontifical de Bento XVI demonstram com excecional clareza o exercício da justiça, assim globalmente considerada e aplicada. Dar todo o lugar a Deus para dar também toda a atenção ao próximo, foi o que constantemente nos exortou a fazer, homilia a homilia, encíclica a encíclica, atitude a atitude.

Mesmo a sua insistência em recusar o indiferentismo ou o esquecimento de qualquer dimensão humana, incluindo a religiosa, vai nesse sentido. O lugar de Deus e a referência ao absoluto não são dispensáveis, se não quisermos de seguida dispensar ou relativizar a realidade no seu conjunto ou cada pessoa no seu particular.

Não seria difícil citar aqui inúmeras passagens do seu magistério, mas, no curto espaço que uma homilia deve ter, fico-me apenas com algumas alusões ao que proferiu entre nós, na memorável viagem a Portugal de 11 a 14 de maio de 2010. É demasiado importante para ficar esquecido e é oportuno agora acentuá-lo aqui.

Ainda a caminho, no avião que o trazia até nós, disse aos jornalistas que o acompanhavam ser necessário dialogar com todas as correntes que alastraram na Europa moderna, em «séculos de dialética entre Iluminismo, secularismo e fé». E não o fez pela negativa, antes para suscitar um diálogo verdadeiro e mais capaz. Disse assim: «Hoje vemos que justamente esta dialética é uma oportunidade, que devemos encontrar uma síntese e um diálogo profundo e de vanguarda» (todas as citações de Bento XVI, podem ser conferidas nas partes respetivas de Bento XVI e Portugal, Contigo caminhamos na esperança, Lisboa, Paulus, 2010).

Um diálogo profundo e de vanguarda… Assim o disse e assim o tentou sempre nos anos do seu pontificado. Diálogo com o pensamento e a cultura e diálogo interno e externo, com a Igreja e as religiões em geral. Porque em todos os casos tratava-se da mesma justiça, em que nada se ilude ou secundariza, desde que interesse ao absoluto de Deus ou à realidade humana, por mais distinta e complexa que se apresente.

Por isso falava em síntese a atingir, mais à frente e mais a fundo, com especial atenção à crescente variedade de pessoas e convicções existentes no espaço europeu e além dele. Só este facto deveria – como sempre deve – abrir mais espaço e respeito para com a dimensão religiosa que tantas pessoas trazem e não descuram. Continuava assim o seu discurso a caminho de Portugal, a 11 de maio de 2010: «Na situação multicultural na qual todos estamos, vê-se que uma cultura europeia que fosse unicamente racionalista não possuiria a dimensão religiosa transcendente; não seria capaz de entrar em diálogo com as grandes culturas da humanidade, que possuem, todas elas, esta dimensão religiosa transcendente, que é uma dimensão do ser humano».

Mais uma vez, trata-se de “justiça”. Justiça que dê a Deus o lugar que o coração humano não dispensa, como fé ou como procura. Esta tónica está sempre presente no pensamento do Papa Ratzinger e vimo-la também no que nos disse naqueles dias entre nós.

Patriarcado de Lisboa

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