Abriu os olhos de madrugada e percebeu de imediato que a noite sono estava acabada.
Era Domingo, tinha Missas para celebrar, mas não tinha a mínima vontade de se levantar.
Uma
vergonha, um medo, uma impotência, tomavam conta dele e naquele momento
a sua vontade era desaparecer para ninguém saber dele.
E ele não tinha culpa nenhuma!
Sempre
se tinha mantido fiel à sua entrega a Deus e à Igreja e, tirando as
fraquezas e faltas normais de qualquer ser humano, tinha sido sempre
fiel ao compromisso sagrado que tinha proferido no dia da sua ordenação.
Por
causa de uns quantos colegas padres que se tinham deixado levar pelo
mundo, sofria agora na pele a ignomínia que, afinal, não lhe podia ser
assacada.
Que vergonha, meu Deus, que vergonha!
Deixou-se ficar deitado e pensou que o melhor era rezar na intimidade do seu quarto.
O seu primeiro pensamento e oração foi para as vítimas daquele horror que até tinha dificuldade de pensar.
Senhor
Jesus, Tu que só tens amor para dar, olha por todos estes jovens que
foram vítimas do terrível pecado de alguns dos teus filhos que a Ti se
consagraram, e protege-os, guarda-os no teu coração.
No
amor do Pai, derrama o Espírito Santo em cada um, para que Ele os
ilumine, os guie e afaste deles todos os traumas que com certeza sofrem,
de modo que possam viver a vida que lhes deste, em paz, amor e
felicidade que só Tu podes dar.
Depois,
não sem alguma repulsa, (a sua humanidade era mais forte), não pode
deixar de pensar nos seus colegas padres, (até tinha dificuldade em os
ver assim, nessa condição), rezou por eles também.
Senhor
Jesus, Tu que és perdão e o teu amor é sempre maior que o nosso pecado,
toca o coração destes teus filhos padres que se deixaram cair no
pecado, para que reconheçam os seus terríveis actos, se arrependam
sinceramente e façam um verdadeiro propósito de emenda.
Peço-te,
Senhor Jesus, para que esse arrependimento e propósito de emenda seja
real e sincero, eles mesmo se acusem e se apresentem aos tribunais da
Igreja e da sociedade para serem julgados pelos seus horrorosos actos.
E, perante isso, perdoa-os, Senhor, e recebe-os como ovelhas perdidas que encontraram o seu Pastor.
Infelizmente
nada se alterava na sua disposição de se levantar e enfrentar o dia,
porque pensava em todos aqueles com quem se ia cruzar, e que o iriam
julgar e condenar nos seus pensamentos e opiniões.
Que vergonha, meu Deus, que vergonha!
Estendeu
a mão para a mesa de cabeceira e apanhou o terço que lá estava,
acreditando que a Mãe do Céu havia de interceder por ele e ajudá-lo a
sair daquele sofrimento mental que estava a viver.
Embora
fosse Domingo, decidiu meditar nos mistérios dolorosos por achar que
eram mais “apropriados” à situação que estava a viver.
Antes de começar a rezar veio ao seu coração uma pequeníssima frase: Imitar Cristo.
A oração e a agonia de Jesus no Horto das Oliveiras
Oh, Jesus, também eu rezo e me agonio ao pensar nestes terríveis actos.
Pesam-me
como se fossem meus, mas percebo que talvez esteja a pensar mais em mim
e no que possam dizer de mim, do que nas vítimas e na tua Igreja.
Eu rezo e agonio-me, afinal, por mim, mas Tu rezaste e agoniaste-Te por todos nós.
Tem piedade, Senhor, das vítimas, daqueles que cometeram tais actos e de todos nós.
A prisão e flagelação de Jesus Cristo
Oh, Jesus, também eu estou “preso” nestes meus pensamentos que me tolhem e não me querem deixar viver o meu sacerdócio.
Também eu me flagelo com a vergonha e o medo que neste momento vivem em mim.
Mas
Tu, Senhor, foste realmente preso, tiraram-Te a liberdade e fizeram-Te
sofrer física e mentalmente suplícios sem fim, e Tu o deixaste fazer por
todos nós, por mim.
Tem piedade, Senhor, das vítimas, daqueles que cometeram tais actos e de todos nós.
A coroação de espinhos
Oh,
Jesus, também eu parece que sinto cada olhar, cada palavra sussurrada,
cada conversa que se cala na minha presença, como “espinhos” que me
atravessam o pensamento e me toldam o raciocínio.
Mas
Tu, Senhor, foste ferido realmente por todos os espinhos que afinal
eram e são os pecados de todos nós, que Te magoam, não por Ti, mas
porque sabes que quando pecamos nos afastamos de Ti e nos condenamos a
nós próprios.
Tem piedade, Senhor, das vítimas, daqueles que cometeram tais actos e de todos nós.
A subida de Jesus ao Calvário carregando a Cruz
Oh,
Jesus, também eu tenho o meu “calvário” para subir e a minha cruz para
carregar e, diferentemente de Ti, apetece-me agora desistir de o fazer.
Mas
Tu, Senhor, carregaste a tua Cruz que afinal era a soma de todas as
nossas cruzes, subiste ao Calvário sem um queixume, sem vergonha, sem
medo, porque o fizeste por todos nós pelo infinito amor que nos tens.
E eu até penso em desistir da minha cruz quando sei bem que Tu estás sempre disposto a carrega-la comigo.
Tem piedade, Senhor, das vítimas, daqueles que cometeram tais actos e de todos nós.
A crucificação e morte de Jesus
Oh, Jesus, também eu me parece que sou “crucificado” no “altar” da opinião pública.
Também eu parece que “morro” quando me lembro, (e como poderia eu esquecer-me?), deste horror que abala a Igreja.
Mas Tu, Senhor, entregaste-Te assim, total e completamente, para seres crucificado e morreres por cada um de nós.
E
dessa tua entrega nasce também a vida, a vida eterna, que dás a todos
aqueles que Te seguem deixando-se morrer em Ti para em Ti ressuscitarem.
Tem piedade, Senhor, das vítimas, daqueles que cometeram tais actos e de todos nós.
Acabou
a Salve Rainha, fechou os olhos, e deixou-se ficar mais um pouco
deitado, mas sentiu que a paz se ia instalando nele e que as forças
anímicas iam voltando.
Abriu os olhos e perante as frestas da janela percebeu a claridade do dia.
Quis
ver nessa claridade a luz que Deus lhe dava para perceber que devia
oferecer tudo aquilo que sentia pelas vítimas e pelos que cometeram tais
pecados.
E isso confortou-o e
deu-lhe forças para se levantar, pensando que de algum modo imitava
Cristo ao oferecer-se para sofrer tudo aquilo que injustamente pensassem
dele.
Já com um sorriso na cara veio à sua memória uma frase que um dia tinha lido e era mais ou menos assim:
Ser Padre
é isto tão somente,
não ser de si,
mas ser de Deus,
para ser de toda a gente.
Marinha Grande, 12 de Novembro de 2022
Joaquim Mexia Alves
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