02 abril 2022

Papa: que as sombras da guerra não dissipem o sonho de paz

 
 
No discurso às Autoridades e ao Corpo Diplomático, o Papa disse ver com tristeza "como o entusiasmo pela paz, surgido depois da II Guerra Mundial, se debilitou nas últimas décadas (...), com alguns poderosos que avançam por conta própria à procura de espaços e zonas de influência. E assim não só a paz, mas também muitas questões importantes, como a luta contra a fome e as desigualdades, foram efetivamente canceladas das principais agendas políticas".
 

Manoel Tavares - Cidade do Vaticano

O primeiro compromisso do Papa Francisco em Malta na manhã deste sábado, 2, foi o encontro com as autoridades, o Corpo Diplomático e os representantes da sociedade e do mundo da cultura no Palácio Presidencial de Valeta.

Ao agradecer as amáveis palavras do presidente George Vella, o Pontífice recordou que os antepassados malteses deram hospitalidade ao Apóstolo Paulo e seus companheiros, durante a sua viagem a Roma, tratando-os com “extraordinária benevolência”.

Referindo-se à Ilha de Malta, coração do Mediterrâneo, Francisco recordou que “há milénios, o entrelaçamento de acontecimentos históricos e o encontro de populações fizeram daquelas ilhas um centro de vitalidade e cultura, espiritualidade e beleza; uma encruzilhada que soube acolher e harmonizar os  migratórios de muitas partes.

Esta diversidade de influxos leva-nos a pensar na variedade dos ventos, que caracterizam o país. Não é por acaso que, nos antigos mapas do Mediterrâneo, a “Rosa dos Ventos” era colocada perto de Malta”.

Tomando a imagem da “Rosa dos Ventos”, que localiza as correntes de ar segundo os quatro pontos cardeais (Norte, Sul, Leste e Oeste), o Papa delineou quatro aspecos essenciais da vida social e política do país.

O vento Norte, recorda a União Europeia, onde vive uma grande família, unida na salvaguarda da paz. A paz brota da unidade. Eis a importância de trabalhar juntos, sem divisões, revigorando as raízes e valores, que forjaram a unidade da sociedade maltesa. Mas, para garantir uma boa convivência social, é preciso também reforçar os alicerces da vida comum, com base no direito, legalidade, honestidade e justiça. Por isso, o esforço de eliminar a ilegalidade e a corrupção deve ser forte como o vento do norte, que purifica as costas do país, erradicando a inércia e a criminalidade. A Casa Europeia compromete-se com a promoção dos valores da justiça e equidade social e a tutela de uma casa mais ampla: a Casa da Criação.  

O vento Norte, disse Francisco, às vezes mistura-se, às vezes, com o vento que sopra do Oeste. Este país europeu, sobretudo os jovens, partilham dos estilos de vida e pensamento ocidentais, dos valores da liberdade e da democracia, mas também dos riscos da ambição do progresso, que os podem separar das raízes.

Os malteses defendem a vida e salvam tantas pessoas. Por isso, Francisco encorajou-os a continuar a defender a vida, desde o início até ao seu fim natural, mas também preservá-la sempre, sobretudo a dignidade dos trabalhadores, dos idosos e dos doentes.

Continuando a comparação com a “Rosa dos Ventos”, o Santo Padre convidou a olhar para Sul, de onde vêm tantos irmãos e irmãs em busca de esperança. Malta, disse, significa “porto seguro”. O crescente afluxo dos migrantes gera medo e insegurança, desânimo e frustração. O fenómeno migratório marca a nossa época e traz consigo injustiças, exploração, mudanças climáticas, conflitos e as suas consequências. Multidões de pessoas partem do sul, pobre e povoado, e dirigem-se para o norte rico. E Francisco acrescentou:

“No agravamento da emergência migratória, pensemos nos refugiados da atormentada Ucrânia que exige respostas amplas e partilhadas. Apenas alguns países não podem arcar com todo este problema, diante da indiferença de outros! Países civis não podem ratificar, por interesses próprios, acordos obscuros com criminosos que escravizam as pessoas. O Mediterrâneo precisa da corresponsabilidade europeia, para voltar a ser teatro de solidariedade e não lugar de trágicos naufrágios.”

Recordando o naufrágio do Apóstolo Paulo que, de modo inesperado, chegou àquelas costas e foi socorrido, o Papa exortou, em nome do Evangelho, que ele pregou naquela Ilha, a “abrir os corações para descobrir a beleza de servir aos mais necessitados. Não devemos encarar o migrante como ameaça, mas como irmão a ser acolhido, segundo o ideal cristão.

Por fim, o Pontífice referiu-se ao vento que sopra do Leste, do Oriente, de onde provêm ventos de guerra, invasões, combates e ameaças atómicas, que só causam mortes, destruição e ódio. Que estas sombras obscuras não levem a dissipar o sonho de paz da humanidade.  E, ao expressar o seu desejo de que o risco de uma “guerra fria alargada” não ceife mais vidas de gerações e povos inteiros, afirmou:

“Quanto precisamos duma «medida humana» face à agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, frente ao risco duma «guerra fria alargada» que pode sufocar a vida de gerações e povos inteiros! Infelizmente, aquele «infantilismo» não desapareceu. Ressurge prepotentemente nas seduções da autocracia, nos novos imperialismos, na difusa agressividade, na incapacidade de lançar pontes e começar pelos mais pobres. Disto começa a soprar o vento gelado da guerra, que desta vez também foi alimentado ao longo dos anos. Sim, desde há tempos que a guerra tem vindo a ser preparada com grandes investimentos e tráficos de armas. E é triste ver como o entusiasmo pela paz, surgido depois da II Guerra Mundial, debilitou-se nas últimas décadas, bem como o percurso da comunidade internacional, com alguns poderosos que avançam por conta própria à procura de espaços e zonas de influência. E assim não só a paz, mas também muitas questões importantes, como a luta contra a fome e as desigualdades, foram efetivamente canceladas das principais agendas políticas.”

O Papa concluiu o seu discurso, dirigindo, mais uma vez, o seu olhar para o Leste europeu e um pensamento no Oriente Médio, a fim de que sigam o exemplo dos malteses, que geram benéficas convivências, apesar das diversidades. É disto que precisam o Líbano, a Síria, o Iêmen e outros contextos, dilacerados por problemas e violência”.

RV

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