Como filhos diante de Deus, como irmãos diante de todos
Caríssimos diocesanos
Iniciamos esta Quaresma com grande proximidade a todos os que sofrem os efeitos da guerra e muito especialmente na Ucrânia.
A nossa proximidade traduz-se na disposição para socorrer e acolher
quanto e como for preciso. Além disso e, como crentes, acreditamos no
poder da oração e do jejum que a intensifica, pois rezar é querer com
Deus e “quem quer o que Deus quer tem tudo quanto quer”.
Querer
com Deus significa acolher a sua paternidade, solícita do bem de todos
os filhos e geradora da nossa fraternidade, começando pelos que mais a
requeiram.
Temos bem presente a
vida de Jesus, que a partir da filiação divina nos ofereceu a
convivência perfeita entre nós. A sua oração foi inteiramente filial, o
seu jejum foi alimentar-se da vontade do Pai e a esmola que nos deu foi a
sua própria vida, plenamente entregue. E foi assim mesmo, com motivação
tão íntima e desprendida de si próprio, que há dois mil anos tudo
renovou e continua a renovar, com os que partilham do seu Espírito.
Nós
acreditamos que há sempre futuro a partir do coração divino e de quem
se mantém filialmente nele e fraternalmente com todos. A Quaresma que
iniciamos leva-nos à Páscoa de Cristo, mas exatamente na medida em que
para lá caminharmos com Ele e a seu modo.
O
modo de Jesus manifesta-se em todo o Evangelho, como estritamente
filial. Não tem outra motivação senão a de cumprir a vontade de Deus
Pai; nada o move senão isso mesmo, a realizar-se em si e nos outros, sem
qualquer ostentação do que faça.
A
frase evangélica é claríssima nesse sentido: «Tende cuidado em não
praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por
eles. Aliás, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos
Céus».
Reparemos que todos os
conflitos nascem da autoimposição, tanto pessoal como mais alargada.
Alega-se um bem que redunda em mal, quando confiscado em proveito
próprio. Deus não se impõe no ato constante de nos dar a vida e os
filhos de Deus, que verdadeiramente o sejam, vivem em ação de graças e
assim partilham o que só de Deus recebem.
Olhemos para Jesus e aprendamos com Ele a ser filhos de Deus.
São muitas as passagens evangélicas que nos mostram como há de ser.
Quando era bem aceite no que dizia e fazia, logo lhe brotava a ação de
graças: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste
estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos.
Sim, ó Pai, porque isso foi do teu agrado!» (Mt 11, 25-26).
Quando
Simão o confessa como Messias e Filho de Deus vivo, logo remete a Deus
Pai a origem dessa fé: «És feliz Simão, filho de Jonas, porque não foi a
carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu» (Mt
16, 17). Assim também em relação a todos nós, pois somente o Pai nos
conduz a Ele: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não
atrair» (Jo
6, 44). E a própria bondade que manifestava não a referia si, mas só e
sempre a Deus Pai, como respondeu ao homem rico: «Porque me chamas bom?
Ninguém é bom senão um só: Deus» (Mc 10, 18).
É
unicamente a vontade do Pai que o sustenta e impele: «O meu alimento é
fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra» (Jo
4, 34). Nada faz sem o Pai, única fonte da sua ação: «O Filho, por si
mesmo, não pode fazer nada, senão o que vir fazer ao Pai, pois aquilo
que este faz também o faz igualmente o Filho» (Jo 5, 19). E assim quanto
a tudo o que faz e ajuíza: «Por mim mesmo, eu não posso fazer nada:
conforme ouço, assim é que julgo; e o meu julgamento é justo, porque não
busco a minha vontade mas a daquele que me enviou» (Jo 5, 30).
E
assim continuaríamos, quase página a página dos quatro Evangelhos, tão
conformes sobre a vida filial de Jesus. Vida filial em relação a Deus
Pai, que é também a fonte da sua vida fraternal em relação a todos,
transbordando o amor que d’Ele recebe: «Assim como o Pai me tem amor,
assim eu vos amo a vós» (Jo 15, 9).
É
este o “segredo” de Jesus e a explicação de tudo o que realiza. Os seus
longos tempos de oração traduzem bem o que intimamente o segura. Pois é
nesse “segredo” que Deus Pai o vê e também a nós: «Quando rezares,
entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu
Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa».
Como
exercício quaresmal, comunitária e pessoalmente, brote a oração de
Cristo em nós, intensamente filial e consequentemente solidária, como no
Pai Nosso se enuncia. Aliás, a oração comunitária ganha sempre com a
intensidade da oração pessoal de cada um. Só assim conseguiremos amar a
todos a partir de Deus, diferentes que sejam e adversários até, como
Jesus exorta: «Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem.
Fazendo assim tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois
Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a
chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 44-45).
Não
se trata de desculpar o indesculpável ou de não corrigir o que merece
correção. Trata-se de em tudo isso não nos mover o rancor, mas aquela
misericórdia com que Deus nos mantém vivos e sempre aguarda o regresso
dos seus pródigos.
Todos precisamos de crescer muito mais nesse sentido, de ver as coisas em Deus e a partir de Deus,
no íntimo dos propósitos e na gratuidade das ações, sem outro intuito
que não seja a glória divina, que é o bem de todos. Bem total, a
respeitar e proteger em cada um, do princípio ao fim do seu percurso
terreno. Porque «a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a
visão de Deus» (Santo Ireneu).
Jejuamos
das coisas, porque só Deus realmente sacia; repartimos o que temos,
pois de Deus provém e a Deus retorna em quem nos pede; oramos
filialmente, porque é este o único modo de estarmos diante da
paternidade divina: como quem recebe, agradece e partilha.
São
tempos difíceis, os desta Quaresma. Com a pandemia ainda por extinguir,
com a guerra na Ucrânia que urge terminar, com a Igreja a renovar, com
tanta pobreza a pedir resposta.
Também
não eram fáceis os que tocaram ao próprio Jesus, dois milénios atrás.
Ensinou-nos a enfrentá-los com um coração filial, correspondendo assim
ao coração de Deus Pai, que no segredo nos vê e recompensa, fazendo-nos
inteiramente seus e de Si para todos.
Assim
mesmo, no mais íntimo e determinante de cada um, para o futuro que
importa. Não para darmos nas vistas alheias, mas para nos refazermos sob
o olhar de Deus. Para refletirmos aos outros o olhar divino, amando e
servindo como Jesus o fez.
É o
que nos pede o tempo que vivemos, é o exercício quaresmal perfeito. Não
adiemos a resposta, «pois até a criação se encontra em expetativa
ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). - É connosco agora!
Sé de Lisboa, Quarta-Feira de Cinzas, 2 de março de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
A renúncia quaresmal de 2021 juntou 117.614,32 €, destinados à Cáritas Diocesana de Lisboa, para continuar a responder a necessidades geradas pela pandemia. A renúncia deste ano será destinada em parte à Diocese de Palai (Índia) a favor do seu hospital, que atende especialmente a população mais pobre; e em parte à Cáritas Diocesana de Lisboa, para apoiar as necessidades do povo ucraniano, duramente atingido pela guerra.
Patriarcado de Lisboa
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