18 março 2022

II Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

 
 
"Para compreender o papel do sacerdote na consagração, é de vital importância conhecer a natureza do sacrifício e do sacerdócio de Cristo, pois é deles que deriva o sacerdócio cristão, tanto o batismal comum a todos, como o dos ministros ordenados."
 

  Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap. 

 

“TOMAI, COMEI: ISTO É O MEU CORPO”

Segunda Pregação, Quaresma de 2022

 

O assunto da nossa catequese mistagógica de hoje é a parte central da Missa, a Oração eucarística, ou Anáfora, que tem no seu cento a consagração. Sobre ela, façamos dois tipos de consideração: uma litúrgica e ritual, a outra, teológica e existencial.

Do ponto de vista ritual e litúrgico, hoje temos um novo recurso que não tinham os Padres da Igreja e os doutores medievais. O recurso novo de que dispomos hoje é a reaproximação entre cristãos e judeus. Desde os primeiríssimos dias da Igreja, diversos fatores históricos levaram a acentuar a diferença entre cristianismo e judaísmo, até a contrapo-los entre si, como o faz já Inácio de Antioquia[1]. Distinguir-se dos judeus ‒ sobre a data da Páscoa, os dias de jejum e em várias outras coisas ‒ tonar-se uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação frequentemente dirigida aos próprios adversários e aos hereges é a de “judaizar”.

A tragédia do povo hebreu e o novo clima de diálogo com o judaísmo, iniciado a partir do Concílio Vaticano II, tornaram possível um melhor conhecimento da matriz hebraica da Eucaristia. Como não se entende a Páscoa cristã se não é considerada como o cumprimento daquilo que a Páscoa hebraica pré-anunciava, assim não se entende a fundo a Eucaristia se não é vista como o cumprimento daquilo que os hebreus faziam e diziam no curso da sua refeição ritual. Um primeiro resultado importante desta retomada foi que nenhum estudioso sério, hoje, avança mais na hipótese de que a Eucaristia cristã seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos mistéricos do helenismo, como se tentou fazer por mais de um século.

Os Padres da Igreja consideraram as Escrituras do povo hebreu, mas não a sua liturgia, à qual não tinham mais acesso, após a separação da Igreja da Sinagoga. por isso, eles utilizaram as figuras contidas nas Escrituras ‒ o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná ‒, mas não o contexto litúrgico concreto em que o povo hebreu celebrava todas estas recordações, isto é, a refeição ritual celebrada, uma vez por ano, na ceia pascal (o Seder) e, semanalmente, no culto sinagogal. O primeiro nome com que a Eucaristia é designada no Novo Testamento por Paulo é o de “ceia do Senhor” (kuriakon deipnon) (1Cor 11,20), com referência evidente à ceia hebraica, da qual já se diferencia pela fé em Jesus. A Eucaristia é o sacramento da continuidade entre Antigo e Novo Testamento, entre judaísmo e cristianismo.

A Eucaristia e a Beraká hebraica

É esta a perspetiva em que se situa Bento XVI, no capítulo dedicado à instituição da Eucaristia no seu segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião já predominante entre os estudiosos, ele aceita a cronologia joanina, segundo a qual a última ceia de Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeição de despedida (a “última ceia”!) e considera que se possa “traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã, isto é, do cânon, a partir da beraká hebraica”[2].

Por várias razões culturais e históricas, a partir da Escolástica em diante, procurou-se explicar a Eucaristia à luz da filosofia, particularmente, das noções aristotélicas de substância e de acidentes. Isto era também um pôr ao serviço da fé os novos conhecimentos do momento e, portanto, um imitar o método dos Padres. Nos nossos dias, devemos fazer o mesmo com os novos conhecimentos, desta vez, de ordens históricas e litúrgicas, mais do que filosóficas. Eles têm a vantagem de serem as categorias com que pensava e falava Jesus, que não eram, certamente, os conceitos aristotélicos de matéria e forma, substância e acidentes, mas as de sinal e realidade e de memorial.

Na linha de alguns estudos recentes, sobretudo o de L. Bouyer, gostaria de mostrar a vívida luz que é lançada sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrativas evangélicas da instituição como pano de fundo do que sabemos da refeição ritual hebraica. A novidade do gesto de Jesus não parecerá diminuída, mas exaltada ao máximo.

O elo entre o antigo e o novo rito é dado pela Didaké, um escrito da era apostólica, que podemos considerar o primeiro esboço de anáfora eucarística. O rito sinagogal era composto por uma série de orações chamadas de “berakah”, que em grego é traduzido por “Eucarestia”. No início da refeição, cada um, à sua vez, tomava em mãos um cálice de vinho e, antes de levá-lo aos lábios, repetia uma bênção que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do ofertório: “Sê bendito, Senhor, nosso Deus, Rei dos séculos, que nos deste este fruto da videira”.

Mas a refeição começava oficialmente apenas quando o pai de família, ou o chefe da comunidade, tivesse partido o pão que devia ser distribuído entre os comensais. E, de facto, Jesus toma o pão, recita a bênção e o distribui dizendo: “Isto é o meu corpo...” E aqui, o rito ‒ que era apenas uma preparação ‒ torna-se a realidade.

Depois da bênção do pão, eram servidos os pratos de costume. Quando a refeição está prestes a terminar, os comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a celebração e lhe dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no início. Feito isto, tendo diante de si um cálice de vinho misturado com água, quem preside convida a fazer as três orações de agradecimento: a primeira a Deus criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira porque a sua obra continua no presente. Terminada a oração, o cálice passava de mão em mão e cada um bebia. Este, o rito antigo realizado por Jesus em vida.

Lucas afirma que, após ter ceado, Jesus tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu Sangue, que é derramado por vós”. Algo de decisivo acontece no momento em que Jesus acrescenta estas palavras à fórmula das orações de agradecimentos, isto é, à beraká hebraica. Aquele rito era um banquete sagrado, no qual se celebrava e se agradecia a um Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma aliança de amor, concluída no sangue de um cordeiro. A refeição diária bendizia Deus por aquela Aliança, mas agora, no momento e, que Jesus decide dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluída aquela velha Aliança que todos juntos estavam a celebrar liturgicamente.

Naquele momento, com poucas e simples palavras, ele estreita com os seus a nova e eterna Aliança no seu Sangue. Acrescentando as palavras “fazei isto em memória de mim”, Jesus confere um alcance duradouro ao seu dom. Do passado, o olhar projeta-se no futuro. Tudo quanto ele fez até agora na ceia é posto nas nossas mãos. Repetindo aquilo que ele fez, renova-se aquele ato central da história humana, que é a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que, na cruz, torna-se evento, na ceia nos é dado como sacramento, isto é, como memorial perene do evento.

Sacerdote e vítima

Isto, dizia eu, no que se refere ao aspeto litúrgico e ritual. Passemos agora à outra consideração, àquela de tipo pessoal e existencial, noutras palavras, ao papel que desempenhamos nós, sacerdotes e fiéis, em tal momento da Missa. Para compreender o papel do sacerdote na consagração, é de vital importância conhecer a natureza do sacrifício e do sacerdócio de Cristo, pois é deles que deriva o sacerdócio cristão, tanto o batismal comum a todos, como o dos ministros ordenados.

Nós não somos mais, na realidade, “sacerdotes segundo a ordem de Melquisedec”; sosmos sacerdotes “segundo a ordem de Jesus Cristo”; sobre o altar, agimos “in persona Christi”, isto é, representamos o Sumo Sacerdote que é Cristo. Sobre este tema, o Simpósio sobre o sacerdócio, acontecido nesta Sala no mês passado, disse infinitamente mais do que eu posso dizer nesta minha breve reflexão (preparada, além do mais, antes daquela data), mas é também necessário dizer algo aqui para a compreensão da Eucaristia.

A Carta aos Hebreus explica em que consiste a novidade e a unicidade do sacerdócio de Cristo: “Ele entrou no Santuário, não com o sangue de bodes e bezerros, mas com o seu próprio sangue, e isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12). Todo o sacerdote oferece algo de exterior a si mesmo, Cristo ofereceu a si mesmo; todo o outro sacerdote oferece vítimas, Cristo ofereceu-se vítima!

Santo Agostinho encerrou em poucas palavras a natureza deste novo género de sacerdócio, em que sacerdote e vítima são a mesma pessoa: “Ideo sacerdos quia sacrificium”, sacerdote porque vítima[3]. Um notável estudioso definiu esta novidade do sacrifício de Cristo como “o facto central na história religiosa da humanidade”, que pôs fim para sempre à intrínseca aliança entre o sacro e a violência[4].

Em Cristo, é Deus quem se faz vítima. Não são mais os seres humanos que oferecem sacrifícios a Deus para aplacá-lo e torná-lo favorável; é Deus quem se sacrifica a si mesmo pela humanidade, entregando à morte por nós o seu Filho unigênito (cf. Jo 3,16). Jesus não veio com o sangue alheio, mas com o próprio sangue; não pôs os seus pecados sobre as costas dos outros – animais ou criaturas humanas –, mas pôs os pecados dos outros sobre as suas costas: “Carregou os nossos pecados no seu próprio corpo, sobre o lenho da cruz” (1Pd 2,24). Tudo isto significa que, na Missa, nós devemos ser ao mesmo tempo sacerdotes e vítimas.

À luz disto, reflitamos sobre as palavras da consagração: “Tomai e comei: isto é o meu corpo, que será entregue por vós”. Quero dizer, a este propósito, a minha pequena experiência, isto é, como cheguei a descobrir o alcance eclesial e pessoal da consagração eucarística. Eis como eu vivia o momento da consagração na santa Missa nos primeiros anos do meu sacerdócio: eu fechava os olhos, inclinava a cabeça, procurava alienar-me de tudo o que me circundava, para me identificar em Jesus que, no Cenáculo, pronunciou pela primeira vez aquelas palavras: “Accipite et manducate: Tomai e comei...”. A própria liturgia inculcava esta postura, fazendo pronunciar as palavras da consagração a baixa voz e em latim, inclinado sobre as espécies.

Seguidamente, houve a reforma litúrgica do Vaticano II. Começou-se a celebrar a Missa olhando para a assembleia; não mais em latim, mas na língua do povo. Isto ajudou-me a entender que aquela minha postura, sozinho, não exprimia todo o significado da minha participação na consagração. Aquele Jesus do Cenáculo não existe mais! Existe o Cristo ressuscitado: o Cristo, para sermos exatos, que morreu, mas agora vive para sempre (cf. Ap 1,18). Mas este Jesus é o “Cristo total”, Cabeça e corpo inseparavelmente unidos. Portanto, se é este Cristo total que pronuncia as palavras da consagração, eu também as pronuncio com ele. Eu pronuncio-as, sim, “in persona Christi”, em nome de Cristo, mas também “na primeira pessoa”, isto é, em meu nome.

A partir daquele dia em que compreendi isto, comecei a não mais fechar os olhos no momento da consagração, mas a olhar – ao menos uma vez ou outra ‒ os irmãos que tenho em frente, ou, se celebro sozinho, penso naqueles que devo encontrar durante o dia e aos quais devo dedicar o meu tempo, ou penso mesmo em toda a Igreja e, voltado para eles, digo com Jesus: “Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo, que quero dar por vós... Tomai, todos, e bebei: isto é o meu sangue, que quero derramar por vós”.

Posteriormente, veio Santo Agostinho tirar-me toda a dúvida. “Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma”[5], escreve numa famosa passagem do De civitate Dei. Mais perto de nós, a mística mexicana Concepción Cabrera de Armida, familiarmente chamada Conchita, falecida em 1937 e beatificada pelo Papa Francisco em 2019, ao filho jesuíta, prestes a ser ordenado sacerdote, escreveu estas palavras: "Lembra-te, meu filho, quando tiveres na mão a Hóstia Sagrada, não dirás: 'Aqui está o corpo de Jesus, aqui está o seu sangue', mas dirás: 'Isto é o meu corpo, este é o meu sangue': isto é, uma transformação deve ocorrer em ti totalmente, você deves-te perder nele, ser outro Jesus”.[6]

Tudo isto não se aplica apenas aos bispos e sacerdotes ordenados, mas a todos os batizados. Um famoso texto do Concílio assim se expressa:

“Os fiéis, por sua parte, concorrem para oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real... Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação, quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente, mas cada um do seu modo, tomam todos parte na ação litúrgica”[7].

Há dois corpos de Cristo sobre o altar: há o seu corpo real (o corpo “nascido da Virgem Maria”, morto, ressuscitado e subido ao céu) e há o seu corpo místico, que é a Igreja. Contudo, sobre o altar, está presente realmente o seu corpo real e está presente misticamente o seu corpo místico, em que “misticamente” significa: por força da sua inseparável união com a Cabeça. Nenhuma confusão entre as duas presenças, que são distintas, mas inseparáveis.

Dado que há duas “ofertas” e dois “dons” sobre o altar – o que deve tornar-se o corpo e o sangue de Cristo (o pão e o vinho) e o que deve tornar-se o corpo místico de Cristo –, assim há também duas “epicleses” na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo. Na primeira, reza-se: “Por isso, nós vos suplicamos: santificai pelo Espírito Santo as oferendas que vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se tornem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo”; na segunda, que se recita após a consagração, reza-se: “sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito. Que ele faça de nós uma oferenda perfeita”.

Eis como a Eucaristia faz a Igreja: a Eucaristia faz a Igreja, fazendo dela uma Eucaristia! A Eucaristia não é apenas, genericamente, a fonte ou a causa da santidade da Igreja; é também a sua “forma”, isto é, o modelo. A santidade do cristão deve realizar-se segundo a “forma” da Eucaristia; deve ser uma santidade eucarística. O cristão não pode limitar-se a celebrar a Eucaristia, deve ser Eucaristia com Jesus.

O corpo e o sangue

Agora podemos tirar as consequências práticas desta doutrina para a nossa vida diária. Se, na consagração, também somos nós que dizemos, voltados para os irmãos: “Tomai, comei: isto é o meu corpo. Tomai e bebei isto é o meu sangue”, devemos saber o que significam “corpo” e “sangue”, para saber o que oferecemos.

A palavra “corpo” não indica, na Bíblia, um componente, ou uma parte, do homem que, unido aos outros componentes que são a alma e o espírito, forma o homem completo. Na linguagem bíblica e, portanto, na de Jesus e de Paulo, “corpo” indica o homem inteiro, na medida em que vive a sua vida num corpo, numa condição corpórea e mortal. “Corpo”, portanto, indica toda a vida. Ao instituir a Eucaristia, Jesus deixou-nos toda a sua vida como um dom, desde o primeiro momento da encarnação até ao último momento, com tudo o que preenchia concretamente aquela vida: silêncio, suor, fadigas, oração, lutas, humilhações...

A seguir, Jesus diz: “Isto é o meu sangue”. O que acrescenta com a palavra “sangue”, se já nos deu toda a sua vida no seu corpo? Acrescenta a morte! Depois de nos ter dado a vida, ele também nos dá a parte mais preciosa dela, a sua morte. De facto, o termo “sangue”, na Bíblia, não indica uma parte do corpo, isto é, uma parte de uma parte do homem; indica um evento: a morte. Se o sangue é a sede da vida (assim se pensava então), o seu “derramamento” é o sinal plástico da morte. A Eucaristia é o mistério do corpo e do sangue do Senhor, isto é, da vida e da morte do Senhor!

Agora, vindo a nós, o que oferecemos, oferecendo o nosso corpo e o nosso sangue, junto com Jesus, na Missa? Nós também oferecemos o que Jesus ofereceu: a vida e a morte. Com a palavra “corpo”, damos tudo o que constitui concretamente a vida que levamos neste mundo, a nossa experiência: tempo, saúde, energias, capacidades, afeto, talvez apenas um sorriso. O sorriso é algo que só um espírito que vive em um corpo pode fazer e é, às vezes, algo tão precioso. Com a palavra “sangue”, também nós expressamos a oferta da nossa morte. Não necessariamente a morte definitiva, o martírio por Cristo ou pelos irmãos. É morte tudo o que em nós, a partir de agora, prepara e antecipa a morte: humilhações, fracassos, doenças que imobilizam, limitações causadas pela idade, pela saúde, tudo isto, numa palavra, que nos “mortifica”.

Tudo isto exige, contudo, que nós, assim que saímos da Missa, empenhemo-nos em cumprir o que dissemos; que realmente nos esforcemos, com todas as nossas limitações, para oferecer aos irmãos o nosso “corpo”, isto é, o tempo, as energias, a atenção; numa palavra, a nossa vida. É preciso, portanto, que, depois de ter dito aos irmãos: “Tomai, comei”, nós nos deixemos realmente “comer”, e nos deixemos comer sobretudo por quem não o faz com toda a delicadeza e cortesia que esperaríamos. Santo Inácio de Antioquia, a caminho de Roma para aí morrer mártir, escrevia: “Sou trigo de Deus, serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me o puro pão de Cristo”[8]. Cada um de nós, se olhar bem em redor, verá esses dentes afiados de feras que ameaçam: são críticas, contrastes, oposições ocultas ou às claras, divergências de opiniões com quem está ao nosso lado, diversidades de caráter.

Tentemos imaginar o que aconteceria se celebrássemos a Missa com esta participação pessoal, se todos realmente nos disséssemos, no momento da consagração, quem em voz alta, quem em silêncio, segundo o ministério de cada um: “Tomai, comei”. Um sacerdote, um pároco e, mais ainda, um bispo, celebra assim a sua Missa, depois sai: reza, prega, confessa, recebe pessoas, visita doentes, escuta... Também o seu dia é Eucaristia. Um grande mestre espiritual francês, Pierre Olivaint (1816-1871), dizia: “De manhã, na Missa, eu sou sacerdote e Jesus é vítima; ao longo do dia, Jesus é sacerdote e eu, vítima”. Assim um sacerdote imita o “bom Pastor”, porque dá realmente a vida pelas suas ovelhas.

A nossa assinatura sobre o dom

Gostaria de resumir, com a ajuda de um exemplo humano, o que acontece na celebração eucarística. Pensemos numa numerosa família na qual há um filho, o primogénito, que admira e ama sem medidas o próprio pai. Pelo seu aniversário, quer dar-lhe um presente precioso. Antes de presenteá-lo, porém, pede secretamente a todos os seus irmãos e irmãs para pôr a sua assinatura sobre o presente. Este chega às mãos do pai, portanto, como sinal de amor de todos os seus filhos, indistintamente, mesmo se, na realidade, apenas um pagou o preço dele.

É o que acontece no sacrifício eucarístico. Jesus admira e ama sem medidas o Pai celeste. A Ele, quer dar, cada dia, até ao fim do mundo, o dom mais precioso que se possa imaginar, o da sua própria vida. Na Missa, ele convida todos os seus irmãos e irmãs a pôr a própria assinatura sobre o dom, de maneira que ele chegue a Deus Pai como dom indistinto de todos os seus filhos, ainda que apenas um tenha pagado o preço de tal dom. E que preço!

A nossa assinatura são as poucas gotas de água que são misturadas no vinho do cálice. Não são mais do que água, mas, misturadas no cálice, tornam-se uma única bebida. A assinatura de todos é o solene Amém que a assembleia pronuncia, ou canta, no términar da doxologia: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre... AMÉM!”.

Sabemos que quem assinou um compromisso, tem o dever de honrar a própria assinatura. Isto quer dizer que, saindo da Missa, devemos fazer também nós, da nossa vida um dom de amor ao Pai e aos irmãos. Nós, repito, não somos chamados apenas para celebrar a Eucaristia, mas também a nos fazermos eucaristia. Que Deus nos ajude nisto!

Tradução de fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos Magnésios, 10,3.

[2] Cf. J. Ratzinger – Benedetto XVI, Gesù di Nazaret, vol. II, LEV, Roma 2011, p.132-163; cf. L. Bouyer, Eucharistie. Théologie et spiritualità de la prière eucharistique. Desclée, Tournai 1966 (trad. ital. Eucaristia. Teologia e spiritualità della Preghiera eucaristica, LDC, Torino 1983.

[3] Agostinho, Confissões, X,43.

[4] Cf. R. Girard, Des choses cachées depuis la fondation du monde, Grasset, Paris 1978.

[5] Cf. Agostinho, De civitate Dei, X, 6: “In ea re quam offert, ipsa [Ecclesia] offertur”.

[6] Diario spirituale di una madre di famiglia, a cura di M.-M. Philipon, Roma, Città Nuova, 1985, p. 117.

[7] Lumen gentium, 10-11.

[8] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos romanos, 4,1.

VN

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