Uma presença real, de consequências precisas
Nesta Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo há muito a considerar, meditar e aprender.
Tanto que nunca se abarca duma vez e cada ano nos revela algo de novo e
mais profundo. Podemos considerá-la como compêndio do realismo cristão.
Realismo, como São Paulo escreveu aos Colossenses, distraídos que
andavam com muita coisa secundária ou imaginária: «A realidade está em
Cristo!» (Cl 2, 17).
Hoje
como então, corremos o risco de nos dispersarmos por aspetos marginais
do cristianismo, buscando coisas extraordinárias e miraculosas, no
sentido vulgar do termo… Porém - e muito pelo contrário – o que o
cristianismo tem de extraordinário e miraculoso é o facto de acontecer
no que há de mais simples e corrente, como apareceu na humanidade de
Jesus, enquanto Verbo de Deus encarnado. Ninguém esperaria Deus desse
modo, mas nós sabemos e confessamos que assim mesmo foi e continua a
ser.
É a substância do realismo
cristão. A imensidão divina diz-se e revela-se no pouco mais de trinta
anos da vida humana de Jesus. Como a Carta aos Hebreus nos sugere o diálogo entre Jesus e Deus Pai: «Não quiseste sacrifício nem oferenda, mas preparaste-me um corpo» (Hb 10, 5).
Um
corpo, precisamente, que é o Corpo de Deus Filho entre nós. Corpo
infantil do Filho de Maria, que José adotou: um menino a brincar entre
os mais, como lembraria depois (cf Lc 7, 32). Corpo já adulto,
que em tudo traduziu a misericórdia que trazia. Rosto definido, palavras
concretas e gestos transparentes, como sempre teve.
Assim foi, Jesus, “corpo de Deus” neste mundo.
Porque dizer corpo é dizer manifestação da pessoa que se é, como ser em
relação. E porque, sem confundirmos Jesus e Deus Pai, reconhecemos que
expressava e concretizava a aproximação divina a cada um, como perfeito
Verbo de Deus. Tanto que pôde responder a um discípulo; «Quem me vê, vê o
Pai» (Jo 14, 9). Mesmo na cruz, tanto se contempla a oferta do
Filho como as mãos do Pai e o sopro do Espírito: «Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito! (Lc 23, 46)»
Em
suma, encontramos tudo o que há de mais real e concreto na revelação de
Deus em Cristo. Tudo o que há de mais corpóreo, de Deus para nós,
quando o vemos assim.
Creio que
é precisamente este realismo cristão o que mais influiu no melhor da
cultura de tanto tempo já somado. Assim foi até há dois mil anos como
profecia e de então para cá como realização. Identificamos a nossa
realidade vivida ou sofrida com a que Cristo viveu e sofreu também.
Social e culturalmente, cada passo do seu percurso terreno tornou-se um
padrão criativo de identificação absoluta para todos nós. Em Cristo,
Deus encontra-nos aí mesmo, no drama comum que a todos nos toca. E é por
isso mesmo que consola e salva.
Também
deste modo quis ficar connosco. Ouvimo-lo há pouco: «Isto é o meu
corpo, entregue por vós!» Maior realismo não podia haver, sendo Deus tão
grande em sinais tão nossos: o Corpo de Deus na espécie do pão. O corpo
eucarístico de Cristo, como daqui a pouco estará sobre o altar, pelos
próprios gestos que nos mandou repetir: «Fazei isto em memória de mim!»
Esse mesmo que comungamos e adoramos no Santíssimo Sacramento, coração
da Igreja no coração do mundo.
Que
importante, que inadiável mesmo, é intensificarmos e afervorarmos a
devoção eucarística, acompanhando Aquele que nos quer acompanhar a nós,
no realismo sacramental com que a todos e por todos se oferece.
Uma presença real de consequências bem precisas. Se, em Cristo, Deus nos incorpora a nós, é também nos outros que tocamos Deus.
Por
isso falamos de Corpo de Cristo em várias aceções que se alargam. O
corpo humano do Filho de Maria, como foi concebido e depois nasceu,
cresceu e morreu; o seu corpo ressuscitado, como sabemos e dizemos: “Ele
está no meio de nós!”; o seu corpo eclesial, que constitui connosco,
n’Ele batismalmente incorporados e por Ele eucaristicamente alimentados;
e o corpo daqueles em que nos espera, na humanidade total que assumiu,
para ser sustentado, dessedentado, acolhido ou visitado. Também aqui
ecoa a ordem de Cristo que ouvimos há pouco: «Dai-lhes vós mesmos de
comer!» (Lc 9, 13).
Correspondendo
na prática ao que proclamamos, compreendemos também que celebrar a
Solenidade de hoje é levá-la à consequência necessária em tudo quanto
cada pessoa nos requer, da vida à saúde, do pão à morada, do trabalho ao
descanso. Estas mesmas circunstâncias humanas são também divinas, pela
presença de Cristo que nos incorpora. É por isso que, juntando de novo a
nossa voz à de tantas pessoas e instituições da sociedade civil e
diversos credos, que requerem respeito legal e apoio concreto à vida
mais frágil, só podemos e devemos rejeitar o aborto e a eutanásia e tudo
quanto a tal possa levar, por falta de resposta solidária e pública a
quem precisar de apoio e companhia.
Contrariamente
ao que se diz, mais como os antigos gnósticos do que como cristãos
autênticos, ninguém tem propriamente um corpo, porque já é em si mesmo
um corpo, como polo de relação com os outros. Sabê-lo é também evitar
muita distorção, no que se faça a si mesmo ou a quem quer que seja.
Porque dizer “corpo” é dizermo-nos a nós e dizermos os outros, com toda a
dignidade pessoal de cada um, da conceção à morte natural, saudável ou
mais carente de cuidados, inviolável sempre. Ninguém desistirá de viver
se nós todos, pessoal e comunitariamente, não desistirmos de quem sofre.
É
sempre do realismo cristão que falamos, nas várias aceções que
comporta. Corresponder-lhe mais e concretizá-lo melhor é o sentido da
Solenidade de hoje, como esta tarde a levaremos à cidade. Adorar a
Cristo no seu corpo eucarístico é fonte abundante de serviço à vida dos
que Ele incorpora. Souberam-no e sabem-no os heróis e heroínas da
caridade cristã, que graças a Deus não faltaram ontem como não faltam
agora e a todos estimulam. Celebremos, adoremos e sirvamos o Corpo de
Deus, na constante procissão das vidas.
Sé de Lisboa, 16 de junho de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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