Para entender finalmente a Escritura
Ouvimos há pouco a Maria Madalena: «Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram…».
Pois bem, nós estamos aqui neste dia inteiramente pascal porque sabemos
onde Ele está. Como direis daqui a pouco: «Ele está no meio de nós!».
Aliás,
também a discípula o soube e logo ali bem perto, quando Ele a chamou
pelo nome. E depois os discípulos, quando nesse primeiro Domingo Jesus
não precisou que lhe abrissem a porta da sala onde estavam para se
apresentar no meio deles. E, daí até hoje, é a mesma presença que
reconhecemos, preenchendo todo o espaço e todo o tempo: «Ele está no
meio de nós!» E dizemo-lo com uma certeza surpreendente, que antecede
tudo mais, como evidência que se impõe e o tempo não dilui.
Sim,
poderei dizer por todos vós, que a presença de Cristo não é apenas
memória do que disse e fez, como desde há dois milénios é transmitida.
Não pensamos nele como em mais uma figura do passado, memorável que
fosse por algum feito realizado. Guardamos certamente essas figuras e o
seu legado, reconhecendo nelas o melhor que a humanidade atingiu e nos
legou. Não é pouco e é sobretudo justíssimo que o façamos.
Mas
com Jesus Cristo é diferente. Diferente porque não é passado só, mas
presente hoje, como será amanhã. Preencheu tão totalmente o pouco
espaço-tempo que foi o seu que o alargou a toda realidade em qualquer
ocasião que seja. Sim, ressuscitou naquela altura precisa, a seguir ao
silêncio do sábado. Mas, sobretudo sim, aí despontou o Domingo que não
tem ocaso e o faz contemporâneo de cada um de nós. Assim o
experimentamos e confessamos, como companhia permanente e total. Aliás,
espera-nos agora aonde nos precede, em toda Galileia deste universo em
expansão.
A Páscoa de Jesus
abrange-nos como o fez a Saulo na estrada de Damasco, reduzindo tudo o
que estava para trás a expetativa ou indício, finalmente compreendido.
Trata-se duma presença que relativiza ou inclui todas as outras. A
Páscoa de Jesus é um acontecimento absoluto, que reconfigura tudo o
mais.
Com ela “ressuscitaremos para a luz da vida”, como pediu a oração coleta.
Por isso o batismo que recebemos se chama também “iluminação”. Dêmo-nos
conta de que efetivamente assim é, pois que o modo como vemos as
coisas, próprias e alheias, só à luz da ressurreição de Cristo se
consegue explicar.
Falei do
batismo e devo dizê-lo mais devagar. Na antiga definição do sacramento, é
obra da graça divina, mas pressupõe que não haja óbice da nossa parte.
Daí a consciência que requer a quem o recebe e a quem o pede para
outrem. Como acontecia com os primeiros cristãos e ainda sucede agora
onde não há liberdade religiosa, implica risco e compromisso. Não se
trata de tingir religiosamente a vida que se leva ou quer levar;
trata-se, isso sim, de mergulhar profundamente na Páscoa de Cristo, para
emergir diferente, com tudo o que ela exige e nos oferece além de nós.
Há
inegavelmente um antes e um depois de Cristo, tanto na história do
mundo como na história pessoal de cada um. Não é difícil aos
historiadores verificarem que assim é, tal a diferença entre o que as
culturas e civilizações tocadas pela mensagem cristã foram manifestando
no modo de entender a dignidade humana, a relação com os outros e a
presença no mundo e o que outras maneiras de ver tinham ou continuam a
ter.
Igualmente no que a cada
pessoa diz respeito. - Algum de nós pensaria como pensa, sobre si e
sobre os outros, sobre a vida e sobre a morte, sobre o sentido ou
não-sentido das coisas, se não reconhecesse a Jesus como o Cristo e não O
sentisse em si e junto a si, nos múltiplos sinais da sua presença e nas
constantes interpelações que vai fazendo?!
Interpelações
constantes e redobradas agora, em tempo de profundas mudanças na
cultura e na civilização, porque tanto tocam a valorização das coisas
como a organização da vida coletiva. Não há campo em que a questão não
se ponha e tudo nos coloca hoje numa situação semelhante à daqueles que
primeiro viveram a ressurreição de Cristo. Precisamente aqueles que a
essa luz pascal perceberam o que realmente vale.
No
Ressuscitado compreenderam que a vida se ganha quando se oferece e que
viver em Cristo é viver com os outros e para os outros, solidários como
Ele foi e nos ensina a ser com todos e cada um, a começar pelos mais
frágeis e injustiçados. Precisamente com esses se identificou Cristo
crucificado. É estando com eles que mais estamos com Cristo, que assim
mesmo ressuscitou.
Isto nos leva à última frase do Evangelho de há pouco. Diz que os discípulos «ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus havia de ressuscitar dos mortos».
Assim
como já respondemos a Maria Madalena, dizendo que sabemos onde está o
Senhor, digamos agora aos discípulos que sim, que entendemos a
Escritura, segundo a qual Jesus havia de ressuscitar dos mortos. E
respondamos convictamente tanto a uma como a outra interpelação.
Na
verdade, toda a Escritura que antecede a vida de Jesus só encontra
“pleno cumprimento” no movimento total que o nunca por demais citado
hino da Carta aos Filipenses nos entoa: Sendo de condição divina, Cristo
esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo e até à morte e
morte de cruz; por isso mesmo Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu
o nome que está acima de todo o nome (cf. Fl 2, 6 ss).
A
promessa feita a Abraão pressupôs também alguma “morte”, no sentido em
que perdeu a sua terra e se dispunha a perder o próprio filho. A saída
do cativeiro egípcio pressupôs a “morte” de Moisés como príncipe, para
se retomar como condutor do povo de Deus. A promessa feita a David viria
a concretizar-se bem depois, quando daquele reino já não restava senão a
profecia – e como esta se realizou em Jesus, de modo tão inesperado e
despossuído de si.
Ressuscitar é
renascer de Deus e inteiramente d’Ele, pressupondo o esvaziamento de
nós próprios e do que desejaríamos só por nós. Ou melhor, convertendo o
que em nós exista de aspiração pessoal mais profunda no perfeito
cumprimento da vontade divina, para que seja esta a conduzir-nos, da
crucifixão à glória.
Sabendo
também que a vontade divina tanto nos quer a nós como quer a todos – e a
todos nos oferece como sinais do seu amor. Por isso mesmo a cruz
gloriosa tanto nos ergue para o Pai como nos oferece aos irmãos, na
haste que se eleva e nos braços que se estendem.
Concretizar
hoje mesmo esta verdade, na ação de graças que nos mantém em Deus e no
serviço concreto que prestarmos aos outros, é viver a Páscoa por que o
mundo espera. Sim, já entendemos que o caminho da ressurreição passa
sempre pela cruz. Pois não se trata de fazer o que faríamos sozinhos,
mas de oferecer aos outros o que só Deus em nós gera. Assim aconteceu
com Cristo e por isso o temos redivivo e tão presente. Assim acontecerá
connosco, quando a sua Páscoa for a nossa vida.
Entendeu-o
São Paulo, quando também morreu para si e se ganhou em Cristo,
dizendo-o depois em frases memoráveis, como esta, que indica um integral
percurso cristão: «… Assim posso conhecê-lo a Ele, na força da sua
ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformando-me com
Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os mortos» (Fl 3, 10-11).
Façamos
Páscoa em nós, para a alargar aos outros em cada momento que seja.
Quando morrer totalmente o egoísmo que aliás nos mataria, seja
individual seja coletivamente; quando o bem dos outros imperar nas
nossas escolhas e atitudes; quando a vontade de Deus nos levar ao
serviço de cada um, começando pelos que mais nos requeiram: então o
coração alarga-se e a ressurreição desponta. - Cristo está no meio de
nós e por nós no meio de todos!
Sé de Lisboa, 17 de abril de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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