A resposta de Deus na cruz de Cristo
A sair lentamente duma pandemia imprevista, lembrando os que ela vitimou e confrontados com uma devastadora guerra na Europa,
a juntar-se às que persistem noutras latitudes, é caso para perguntar
porque estamos hoje aqui e a recordar algo acontecido já tão longe no
tempo e no espaço, como foi a paixão e morte de Jesus de Nazaré…
A
resposta imediata é uma só: Estamos aqui porque o reconhecemos como
Cristo, ou seja, o Messias tão esperado pelo povo bíblico e ainda hoje
por quem o não conheça. Messias ou Cristo significa ungido pelo Espírito
Divino para nos libertar de todos os cativeiros do corpo e da alma.
Assim o sentimos e confessamos nós. É o que significa estarmos aqui e a
revelação do seu porquê.
Reconhecemo-lo, nós e para os outros, por
graça de Deus. Não como chefe vitorioso à maneira das efémeras vitórias
deste mundo, mas com o rosto do servo de Javé, como ouvimos há pouco:
«Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa
das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas
suas chagas fomos curados». Salvou-nos dando a vida por todos e não a
tirando a ninguém.
O seu percurso terreno foi como sabemos e a sua
paixão foi como acabámos de ouvir. Nada que aparentemente o
singularizasse, desde o pequeno perímetro de Nazaré da Galileia, entre a
oficina do trabalho que fazia e a sinagoga do culto que prestava, não
faltando a um nem a outro. Alguma notícia depois, da estada em Cafarnaum
à passagem por outras terras. Falava-se de curas e conversões por ele
realizadas, que indiciavam ser o Messias há muito esperado, embora ele
pedisse discrição a esse respeito.
Na sua última subida a Jerusalém,
começaram por aclamá-lo com “Hossanas ao Filho de David”, mas daí a dias
foi preso, torturado e morto, pelo triste conluio de alguns religiosos e
políticos e entre os gritos da turbamulta. Crucificaram-no por fim e
assim morreu pouco depois, suplicando o perdão divino para os seus
algozes. Mas, ainda aí, parecia mais um condenado entre outros que o
ladeavam…
Perguntemo-nos então e de novo sobre o porquê de estarmos
aqui, tantos séculos passados. Ou melhor, como se tanto tempo passado
não conseguisse tirar-nos de ao pé da cruz.
Esta mesma pergunta é já
resposta, pois significa admiração – palavra próxima de milagre – e uma
admiração única pela atração que sentimos em redor dum crucificado, algo
que por si mesmo não nos atrairia jamais, muito pelo contrário.
Cumpre-se
assim, hoje e aqui, o que Ele próprio predissera: «Eu, quando for
erguido da terra – precisamente na cruz – atrairei todos a mim» (Jo 12, 32).
Deixemos que esta atração se imponha agora e ainda mais ao nosso
espírito. Coincidamos com o que sentiram os poucos que permaneciam junto
daquela cruz levantada, os primeiros a entrever que toda a tragédia
humana se concentrava ali e assim mesmo encontrava salvação, porque
partilhada pelo próprio Deus.
Tragédia partilhada pelo próprio Deus…
Assim continua a ser, como a única esperança que apesar de tudo se
entreabre. Como nestas palavras de há poucos dias, proferidas por um
sacerdote ucraniano numa igreja de Bucha, entre ruínas e cadáveres: «Só
Deus nos deu força para aguentar este inferno. Só Deus me dá força para
contar o que aqui vi. […] Aqui, nestas três valas, foram deixados
homens, mulheres e crianças, muitas crianças, algumas de colo. Estão
aqui centenas de pessoas. Como é possível tanto mal? Como é possível
tanta maldade? Meu Deus, meu Deus, ajuda-nos, dá-nos força» (Público, 5 de abril, p. 2).
Estavam
junto à cruz de Jesus sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de
Cléofas, e Maria Madalena. Duas ou três pessoas de família e uma das
discípulas que o tinham seguido. Também um discípulo especialmente
referido, que confiou a sua Mãe, pedindo-lhe que a guardasse depois.
Eram poucos, mas estavam por muitos mais até hoje, como somos nós,
também discípulos, também confiados à sua Mãe e guardando-a na devoção
agradecida. Nascia ali a Igreja e assim se há de manter, em redor da
cruz e vivendo daquela vida oferecida, como Deus Pai a devolveu. Só por
isso estamos aqui, numa razão bastante e maior do que nós, pois só a
partir dela nos compreendemos agora, para a testemunhar em toda a parte.
Importa
perceber que a missão da Igreja se alarga com os braços da cruz. Braços
que chegam até nós, e por nós hão de chegar aos outros. Não como mero
emblema de naus de antanho ou de condecorações de agora. Mas como vidas
salvas na que Cristo ali nos deu, entregando-nos consigo a Deus Pai e
devolvidas pelo Pai a quem nos espera.
O Espírito com que tudo isto
acontece manifesta-se hoje em cada vida entregue ao bem dos outros. E
pode acontecer assim porque na cruz do Gólgota a humanidade atingiu em
Cristo o ponto a partir do qual tudo verdadeiramente se renova.
Traduzindo a antiga frase e assinalando a convicção duradoura, “a cruz permanece enquanto o mundo se revolve”.
Ali, onde «inclinando a cabeça, expirou». Expirou, repartindo connosco o
mesmo Alento que o movia, para reanimarmos agora tanto desalento que
não falta. Aí mesmo, onde a cruz do mundo se apresenta em fomes, pestes e
guerras persistentes, Cristo está presente, tomando para si o que nos
dói e contando connosco para se aproximar de todos, em cada momento e
situação. Por isso estavam os primeiros ao pé da sua cruz e continuamos
nós onde ela se apresenta hoje em toda a dor do mundo.
Sim, entre
familiares e amigos que sofram no corpo ou no espírito, como em quem não
conhecemos e igualmente sofra. Sim, em quem procure casa, sustento,
saúde e educação para si e para os seus. Sim, em quem precise de apoio
para prosseguir a gravidez e salvaguardar a vida que transporta em si,
ou em quem requer companhia e cuidados para não desistir de viver. Sim,
em quem tenha de fugir da sua terra, da Ucrânia a tantas outras paragens
assoladas pela guerra e a devastação. Sim, em solidariedade plena com
quantos sofrem perseguição pelo facto de serem cristãos ou quererem
aderir a Cristo: Em todas estes casos, na sofrida concretização de cada
um, alargam-se os braços da mesma cruz e encontra-se o mesmo Cristo, que
nela nos espera em tantos rostos. E assim mesmo nos salva, quando a
correspondência é perfeita.
Por isso estamos aqui, na única razão do
atuar divino, como Jesus a revelou um dia: «Tanto amou Deus o mundo, que
lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele
não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16).
Acolhamos a resposta de Deus na cruz de Jesus Cristo e convertamo-nos de vez ao amor que nos salva.
Sé de Lisboa, 15 de abril de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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