04 dezembro 2020

Primeira pregação do Advento - texto integral

 Primeira pregação do Advento 2020 

Texto integral da Primeira pregação do Advento 2020 pelo Frei Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, criado cardeal pelo Papa Francisco. As meditações foram realizadas nesta sexta-feira (04/12) na Sala Paulo VI

“ENSINA-NOS A CONTAR OS NOSSOS DIAS,
PARA QUE O NOSSO CORAÇÃO A SABEDORIA ALCANCE
(Sl 90,12)

Primeira Pregação do Advento de 2020

 

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

Um de nossos poetas, Giuseppe Ungaretti, descreve o estado de espírito dos soldados nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial com um poema composto de apenas nove palavras:

Nós ficamos
como no outono
nas árvores
as folhas.

Hoje é toda a humanidade que experimenta esta sensação de precariedade e caducidade por conta da pandemia. “O Senhor – escreveu S. Gregório Magno – ora por palavras, ora por factos adverte-nos”[1]. No ano marcado pelo grande e terrível “fatco” do corona vírus, esforcemo-nos em captar o ensinamento e que daí cada um de nós possa tirar para a própria vida pessoal e espiritual. São reflexões que podemos fazer apenas entre nós, fiéis, e que talvez seria pouco prudente propor, neste momento, indistintamente a todos, para não aumentar a perplexidade que a pandemia provoca em alguns no que se refere à fé.

As verdades eternas sobre as quais queremos refletir são: primeiro, que todos somos mortais e “não temos aqui cidade permanente”; segundo, que a vida do fiel não termina com a morte porque nos aguarda a vida eterna; terceiro, que não estamos sós no pequeno barco do nosso planeta, porque a “Palavra se fez carne e veio morar entre nós”. A primeira dessas verdades é um objeto de experiência, as outras duas são objetos de fé e esperança

 

Memento mori!

Iniciemos meditando hoje sobre a primeira destas “máximas eternas”: a morte. Ela está resumida na antiga sentença que os monges Trapistas escolheram como lema da sua Ordem, “Memento mori”: lembra-te de que morrerás.

Da morte, pode-se falar de duas maneiras diversas: ou em chave kerigmática, ou em chave sapiencial. O primeiro modo consiste em proclamar que Cristo venceu a morte; que ela não é mais um muro contra o qual tudo se quebra, mas uma ponte rumo à vida eterna. O modo sapiencial ou existencial consiste, ao contrário, em refletir sobre a realidade da morte tal como ela se apresenta à experiência humana, com o objetivo de trazer daí lições para bem viver. É a perspetiva em que nos colocamos nesta meditação.

Este último é o modo em que se fala da morte no Antigo Testamento e, em particular, nos livros sapienciais: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que o nosso coração, a sabedoria alcance”, pede a Deus o salmista (Sl 90,12). Tal maneira de olhar a morte não termina com o Antigo Testamento, mas continua também no Evangelho de Cristo. Recordemos a sua admoestação: “Vigiai, portanto, pois não sabeis o dia, nem a hora” (Mt 25,13), a conclusão da parábola do rico que projetava construir celeiros maiores para a sua colheita: “Insensato! Ainda nesta noite vão tomar a tua vida. E o que acumulaste, para quem será?” (Lc 12,20), e, ainda, a sua frase: “Que adianta a alguém ganhar o mundo inteiro, mas arruinar a sua vida?” (cf. Mt 16,26).

A tradição da Igreja apropriou-se deste ensinamento. Os Padres do deserto cultivavam o pensamento da morte, até fazer disto uma prática constante e mantê-lo vivo com todos os meios. Um deles, que trabalhava tecendo fio de lã, tinha adquirido o hábito de deixar o fuso cair, de vez em quando, e “de colocar a morte diante dos próprios olhos antes de pegá-lo novamente”[2]. “Pela manhã – exorta a Imitação de Cristo – pensa que não chegarás à noite, e à noite, não te prometas o dia seguinte” (I,23). Santo Afonso Maria de Ligório escreve um tratado intitulado Preparação para a morte, que tem sido, por séculos, um clássico da espiritualidade católica.

Tal modo sapiencial de falar da morte encontra-se em todas as culturas, não apenas na Bíblia e no cristianismo. Está presente, secularizado, também no pensamento moderno, e vale a pena acenar brevemente às conclusões a que chegaram dois pensadores, cuja influência ainda é forte na nossa cultura.

O primeiro é Jean-Paul Sartre. Ele inverteu a relação clássica entre essência e existência, afirmando que a existência vem antes e é mais importante da essência. Traduzido em termos simples, isto quer dizer que não existe uma ordem e uma escala de valores objetivos e anteriores a tudo – Deus, o bem, os valores, a lei natural – à qual o homem deve conformar-se, mas que tudo deve partir da própria existência individual e da própria liberdade. Cada pessoa deve inventar e realizar o seu destino como o rio, que, avançando, cava sozinho o próprio leito. A vida é um projeto que não está escrito em nenhuma parte, mas é decidido pelas próprias e livres escolhas.

Este modo de conceber a existência ignora completamente o dado da morte e, por isso, é confortado pela mesma realidade da existência que se quer afirmar. O que pode projetar o homem, se não sabe, nem depende dele, se amanhã ainda estará vivo? A sua tentativa assemelha-se ao de um prisioneiro que passa todo o tempo a projetar o melhor itinerário a seguir para passar de uma parede à outra de sua cela.

Mais crível, sobre este ponto, é o pensamento de um outro filósofo, Martin Heidegger, que também parte de premissas análogas e move-se no mesmo viés do existencialismo. Definindo o homem como um “um-ser-para-a-morte”[3], ele faz da morte não um incidente que põe fim à vida, mas a mesma substância da vida, aquilo de que é feita. Viver é morrer. O homem não pode viver sem queimar e encurtar a vida. Cada minuto que passa é subtraído da vida e dado à morte, como, percorrendo de carro uma estrada, vemos casas e árvores a desaparecerem rapidamente atrás de nós. Viver para a morte significa que a morte não é só o fim, mas também o objetivo da vida. Nasce-se para morrer, não para outra coisa.

Qual é, então, – pergunta-se o filósofo – aquele “núcleo sólido, certo e intransponível”, ao qual a consciência chama o homem e sobre o qual se deve fundar a sua existência, se quiser ser “autêntica”? Resposta: O seu nada! Todas as possibilidades humanas são, na realidade, impossibilidades. Toda a tentativa de projetar-se e de elevar-se é um salto que parte do nada e termina no nada[4]. Resta resignar-se, fazer - como dizem - uma virtude da necessidade e até amar o próprio destino. Uma versão moderna do “amor Fati” dos estóicos.

Santo Agostinho também antecipara esta intuição do pensamento moderno sobre a morte, mas para daí tirar uma conclusão totalmente diversa: não o niilismo, mas fé na vida eterna.

Quando nasce um homem – escrevia – fazem-se tantas hipóteses: talvez será belo, talvez será feio; talvez será rico, talvez será pobre; talvez viverá muito, talvez não... Mas de nenhum se diz: talvez morrerá, talvez não morrerá. Esta é a única coisa absolutamente certa da vida. Quando sabemos que alguém está doente de hidropisia (à época, esta doença era incurável, hoje são outras), dizemos: “Coitado, deverá morrer; está condenado, não há remédio”. Mas não deveríamos dizer a mesma coisa sobre alguém que nasce? “Coitado, deverá morrer, não há remédio, está condenado!”. Que diferença há, se num tempo mais ou menos longo ou breve? A morte é a doença mortal que se contrai ao nascer[5].

Dante Alighieri condensou apenas num verso esta visão agostiniana, definindo a vida humana sobre a terra “um viver que é um correr à morte”[6].

VN

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