CARTA ENCÍCLICA
LUMEN FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A FÉ
1. A luz da fé é a
expressão com que a
tradição da Igreja
designou o grande dom
trazido por Jesus. Eis
como Ele Se nos
apresenta, no Evangelho
de João: « Eu vim ao
mundo como luz, para que
todo o que crê em Mim
não fique nas trevas » (Jo
12, 46). E São Paulo
exprime-se nestes
termos: « Porque o Deus
que disse: "das trevas
brilhe a luz", foi quem
brilhou nos nossos
corações » (2 Cor
4, 6). No mundo pagão,
com fome de luz,
tinha-se desenvolvido o
culto do deus Sol,
Sol invictus,
invocado na sua aurora.
Embora o sol renascesse
cada dia, facilmente se
percebia que era incapaz
de irradiar a sua luz
sobre toda a existência
do homem. De facto, o
sol não ilumina toda a
realidade, sendo os seus
raios incapazes de
chegar até às sombras da
morte, onde a vista
humana se fecha para a
sua luz. Aliás « nunca
se viu ninguém — afirma
o mártir São Justino —
pronto a morrer pela sua
fé no sol ».[1]
Conscientes do amplo
horizonte que a fé lhes
abria, os cristãos
chamaram a Cristo o
verdadeiro Sol, « cujos
raios dão a vida ».[2] A
Marta, em lágrimas pela
morte do irmão Lázaro,
Jesus diz-lhe: « Eu não
te disse que, se
acreditares, verás a
glória de Deus? » (Jo
11, 40). Quem
acredita, vê;
vê com uma luz que
ilumina todo o percurso da
estrada, porque nos vem de
Cristo ressuscitado, estrela
da manhã que não tem ocaso.
.
.
Uma luz
ilusória?
2. E contudo podemos ouvir a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza de proceder de forma autónoma ». E acrescentava: « Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga ».[3] O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã. 3. Por este caminho, a fé acabou por ser associada com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz da razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um espaço: o espaço para a fé abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o homem já não podia ter certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto no vazio, que fazemos por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou como uma luz subjectiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar pessoalmente, mas impossível de ser proposta aos outros como luz objectiva e comum para iluminar o caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autónoma não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no fim de contas, permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E, assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande, para se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves instantes, mas são incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direcção.
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2. E contudo podemos ouvir a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza de proceder de forma autónoma ». E acrescentava: « Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga ».[3] O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã. 3. Por este caminho, a fé acabou por ser associada com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz da razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um espaço: o espaço para a fé abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o homem já não podia ter certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto no vazio, que fazemos por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou como uma luz subjectiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar pessoalmente, mas impossível de ser proposta aos outros como luz objectiva e comum para iluminar o caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autónoma não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no fim de contas, permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E, assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande, para se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves instantes, mas são incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direcção.
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Uma luz a
redescobrir
4. Por isso, urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor. De facto, a luz da fé possui um carácter singular, sendo capaz de iluminar toda a existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão poderosa, não pode dimanar de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais originária, deve porvir em última análise de Deus. A fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para construir solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos novos e experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos abre a visão do futuro. A fé, que recebemos de Deus como dom sobrenatural, aparece-nos como luz para a estrada orientando os nossos passos no tempo. Por um lado, provém do passado: é a luz duma memória basilar — a da vida de Jesus –, onde o seu amor se manifestou plenamente fiável, capaz de vencer a morte. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, dado que Cristo ressuscitou e nos atrai de além da morte, a fé é luz que vem do futuro, que descerra diante de nós horizontes grandes e nos leva a ultrapassar o nosso « eu » isolado abrindo-o à amplitude da comunhão. Deste modo, compreendemos que a fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas. Dante, na Divina Comédia, depois de ter confessado diante de São Pedro a sua fé, descreve-a como uma « centelha / que se expande depois em viva chama / e, como estrela no céu, em mim cintila ». [4] É precisamente desta luz da fé que quero falar, desejando que cresça a fim de iluminar o presente até se tornar estrela que mostra os horizontes do nosso caminho, num tempo em que o homem vive particularmente carecido de luz. 5. Antes da sua paixão, o Senhor assegurava a Pedro: « Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça » (Lc 22, 32). Depois pediu-lhe para « confirmar os irmãos » na mesma fé. Consciente da tarefa confiada ao Sucessor de Pedro, Bento XVI quis proclamar este Ano da Fé, um tempo de graça que nos tem ajudado a sentir a grande alegria de crer, a reavivar a percepção da amplitude de horizontes que a fé descerra, para a confessar na sua unidade e integridade, fiéis à memória do Senhor, sustentados pela sua presença e pela acção do Espírito Santo. A convicção duma fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e na força da sua graça, animava a missão dos primeiros cristãos. Nas Actas dos Mártires, lemos este diálogo entre o prefeito romano Rústico e o cristão Hierax: « Onde estão os teus pais? » — perguntava o juiz ao mártir; este respondeu: « O nosso verdadeiro pai é Cristo, e nossa mãe a fé n’Ele ».[5] Para aqueles cristãos, a fé, enquanto encontro com o Deus vivo que Se manifestou em Cristo, era uma « mãe », porque os fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, uma nova experiência, uma visão luminosa da existência, pela qual estavam prontos a dar testemunho público até ao fim.
4. Por isso, urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor. De facto, a luz da fé possui um carácter singular, sendo capaz de iluminar toda a existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão poderosa, não pode dimanar de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais originária, deve porvir em última análise de Deus. A fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para construir solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos novos e experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos abre a visão do futuro. A fé, que recebemos de Deus como dom sobrenatural, aparece-nos como luz para a estrada orientando os nossos passos no tempo. Por um lado, provém do passado: é a luz duma memória basilar — a da vida de Jesus –, onde o seu amor se manifestou plenamente fiável, capaz de vencer a morte. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, dado que Cristo ressuscitou e nos atrai de além da morte, a fé é luz que vem do futuro, que descerra diante de nós horizontes grandes e nos leva a ultrapassar o nosso « eu » isolado abrindo-o à amplitude da comunhão. Deste modo, compreendemos que a fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas. Dante, na Divina Comédia, depois de ter confessado diante de São Pedro a sua fé, descreve-a como uma « centelha / que se expande depois em viva chama / e, como estrela no céu, em mim cintila ». [4] É precisamente desta luz da fé que quero falar, desejando que cresça a fim de iluminar o presente até se tornar estrela que mostra os horizontes do nosso caminho, num tempo em que o homem vive particularmente carecido de luz. 5. Antes da sua paixão, o Senhor assegurava a Pedro: « Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça » (Lc 22, 32). Depois pediu-lhe para « confirmar os irmãos » na mesma fé. Consciente da tarefa confiada ao Sucessor de Pedro, Bento XVI quis proclamar este Ano da Fé, um tempo de graça que nos tem ajudado a sentir a grande alegria de crer, a reavivar a percepção da amplitude de horizontes que a fé descerra, para a confessar na sua unidade e integridade, fiéis à memória do Senhor, sustentados pela sua presença e pela acção do Espírito Santo. A convicção duma fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e na força da sua graça, animava a missão dos primeiros cristãos. Nas Actas dos Mártires, lemos este diálogo entre o prefeito romano Rústico e o cristão Hierax: « Onde estão os teus pais? » — perguntava o juiz ao mártir; este respondeu: « O nosso verdadeiro pai é Cristo, e nossa mãe a fé n’Ele ».[5] Para aqueles cristãos, a fé, enquanto encontro com o Deus vivo que Se manifestou em Cristo, era uma « mãe », porque os fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, uma nova experiência, uma visão luminosa da existência, pela qual estavam prontos a dar testemunho público até ao fim.
6.
O
Ano da Fé teve início no
cinquentenário da
abertura do Concílio
Vaticano II. Esta
coincidência permite-nos
ver que o mesmo foi um
Concílio sobre a fé,[6]
por nos ter convidado a
repor, no centro da
nossa vida eclesial e
pessoal, o primado de
Deus em Cristo. Na
verdade, a Igreja nunca
dá por descontada a fé,
pois sabe que este dom
de Deus deve ser nutrido
e revigorado sem cessar
para continuar a
orientar o caminho dela.
O Concílio Vaticano II
fez brilhar a fé no
âmbito da experiência
humana, percorrendo
assim os caminhos do
homem contemporâneo.
Desta forma, se viu como
a fé enriquece a
existência humana em
todas as suas dimensões.
7. Estas considerações
sobre a fé — em
continuidade com tudo o
que o magistério da
Igreja pronunciou acerca
desta virtude teologal [7]
— pretendem juntar-se a
tudo aquilo que
Bento XVI escreveu nas cartas
encíclicas sobre a
caridade
e a
esperança. Ele já tinha
quase concluído um primeiro
esboço desta carta encíclica
sobre a fé. Estou-lhe
profundamente agradecido e,
na fraternidade de Cristo,
assumo o seu precioso
trabalho, limitando-me a
acrescentar ao texto
qualquer nova contribuição.
De facto, o Sucessor de
Pedro, ontem, hoje e amanhã,
sempre está chamado a «
confirmar os irmãos » no
tesouro incomensurável da fé
que Deus dá a cada homem
como luz para o seu caminho.
Na fé, dom de Deus e
virtude sobrenatural por Ele
infundida, reconhecemos que
um grande Amor nos foi
oferecido, que uma Palavra
estupenda nos foi dirigida:
acolhendo esta Palavra que é
Jesus Cristo — Palavra
encarnada –, o Espírito
Santo transforma-nos,
ilumina o caminho do futuro
e faz crescer em nós as asas
da esperança para o
percorrermos com alegria.
Fé, esperança e caridade
constituem, numa
interligação admirável, o
dinamismo da vida cristã
rumo à plena comunhão com
Deus. Mas, como é este
caminho que a fé desvenda
diante de nós? Donde provém
a sua luz, tão poderosa que
permite iluminar o caminho
duma vida bem sucedida e
fecunda, cheia de fruto?
CAPÍTULO
I
ACREDITÁMOS NO AMOR
(cf. 1 Jo 4, 16)
(cf. 1 Jo 4, 16)
Abraão, nosso pai na fé
8. A fé desvenda-nos o caminho e acompanha os nossos passos na história. Por isso, se quisermos compreender o que é a fé, temos de explanar o seu percurso, o caminho dos homens crentes, com os primeiros testemunhos já no Antigo Testamento. Um posto singular ocupa Abraão, nosso pai na fé. Na sua vida, acontece um facto impressionante: Deus dirige-lhe a Palavra, revela-Se como um Deus que fala e o chama por nome. A fé está ligada à escuta. Abraão não vê Deus, mas ouve a sua voz. Deste modo, a fé assume um carácter pessoal: o Senhor não é o Deus de um lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um tempo sagrado específico, mas o Deus de uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, capaz de entrar em contacto com o homem e estabelecer com ele uma aliança. A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama por nome. 9. Esta Palavra comunica a Abraão uma chamada e uma promessa. Contém, antes de tudo, uma chamada a sair da própria terra, convite a abrir-se a uma vida nova, início de um êxodo que o encaminha para um futuro inesperado. A perspectiva, que a fé vai proporcionar a Abraão, estará sempre ligada com este passo em frente que ele deve realizar: a fé « vê » na medida em que caminha, em que entra no espaço aberto pela Palavra de Deus. Mas tal Palavra contém ainda uma promessa: a tua descendência será numerosa, serás pai de um grande povo (cf. Gn 13, 16; 15, 5; 22, 17). É verdade que a fé de Abraão, enquanto resposta a uma Palavra que a precede, será sempre um acto de memória; contudo esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória de uma promessa, se torna capaz de abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo do caminho. Assim se vê como a fé, enquanto memória do futuro, está intimamente ligada com a esperança.
10. A Abraão pede-se para
se confiar a esta Palavra. A
fé compreende que a palavra
— uma realidade
aparentemente efémera e
passageira —, quando é
pronunciada pelo Deus fiel,
torna-se no que de mais
seguro e inabalável possa
haver, possibilitando a
continuidade do nosso
caminho no tempo. A fé
acolhe esta Palavra como
rocha segura, sobre a qual
se pode construir com
alicerces firmes. Por isso,
na Bíblia hebraica, a fé é
indicada pela palavra
‘emûnah, que deriva do
verbo ‘amàn, cuja
raiz significa « sustentar
». O termo ‘emûnah
tanto pode significar a
fidelidade de Deus como a fé
do homem. O homem fiel recebe a sua força do
confiar-se nas mãos do Deus
fiel. Jogando com dois
significados da palavra —
presentes tanto no
termo grego pistós
como no correspondente
latino fidelis –, São
Cirilo de Jerusalém exaltará
a dignidade do cristão, que
recebe o mesmo nome de Deus:
ambos são chamados « fiéis
».[8] E Santo Agostinho
explica-o assim: « O homem
fiel é aquele que crê no
Deus que promete; o Deus
fiel é aquele que concede o
que prometeu ao homem ».[9]
11. Há ainda um aspecto
da história de Abraão que é
importante para se
compreender a sua fé. A
Palavra de Deus, embora
traga consigo novidade e
surpresa, não é de forma
alguma alheia à experiência
do Patriarca. Na voz que se
lhe dirige, Abraão reconhece
um apelo profundo, desde
sempre inscrito no mais
íntimo do seu ser. Deus
associa a sua promessa com
aquele « ponto » onde
desde sempre a existência do
homem se mostra promissora,
ou seja, a paternidade, a
geração duma nova vida: «
Sara, tua mulher, dar-te-á
um filho, a quem hás-de
chamar Isaac » (Gn
17, 19). O mesmo Deus que
pede a Abraão para se
confiar totalmente a Ele,
revela-Se como a fonte donde
provém toda a vida. Desta
forma, a fé une-se com a
Paternidade de Deus, da qual
brota a criação: o Deus que
chama Abraão é o Deus
criador, aquele que « chama
à existência o que não
existe » (Rm 4, 17),
aquele que, « antes da fundação do mundo, (...) nos
predestinou para sermos
adoptados como seus filhos »
(Ef 1, 4-5).
No caso de Abraão, a fé em
Deus ilumina as raízes mais
profundas do seu ser:
permite-lhe reconhecer a
fonte de bondade que está na
origem de todas as coisas, e
confirmar que a sua vida não
deriva do nada nem do acaso,
mas de uma chamada e um amor
pessoais. O Deus misterioso
que o chamou não é um Deus
estranho, mas a origem de
tudo e que tudo sustenta. A
grande prova da fé de
Abraão, o sacrifício do
filho Isaac, manifestará até
que ponto este amor
originador é capaz de
garantir a vida mesmo para
além da morte. A Palavra que
foi capaz de suscitar um
filho no seu corpo « já sem
vida (…), como sem vida
estava o seio » de Sara
estéril (Rm 4, 19),
também será capaz de
garantir a promessa de um
futuro para além de qualquer
ameaça ou perigo (cf. Heb
11, 19; Rm 4,
21).
.
.
A fé de
Israel
12.
A história do povo
de Israel, no livro do
Êxodo, continua na
esteira da fé de Abraão.
De novo, a fé nasce de
um dom originador:
Israel abre-se à acção
de Deus, que quer
libertá-lo da sua
miséria. A fé é chamada
a um longo caminho, para
poder adorar o Senhor no
Sinai e herdar uma terra
prometida. O amor divino
possui os traços de um
pai que conduz seu filho
pelo caminho (cf. Dt
1, 31). A confissão
de fé de Israel
desenrola-se como uma
narração dos benefícios
de Deus, da sua acção
para libertar e conduzir
o povo (cf.
Dt 26, 5-11);
narração esta, que o povo
transmite de geração em
geração. A luz de Deus
brilha para Israel, através
da comemoração dos factos
realizados pelo Senhor,
recordados e confessados no
culto, transmitidos pelos
pais aos filhos. Deste modo
aprendemos que a luz trazida
pela fé está ligada com a
narração concreta da vida,
com a grata lembrança dos
benefícios de Deus e com o
progressivo cumprimento das
suas promessas. A
arquitectura gótica
exprimiu-o muito bem: nas
grandes catedrais, a luz
chega do céu através dos
vitrais onde está
representada a história
sagrada. A luz de Deus
vem-nos através da narração
da sua revelação e, assim, é
capaz de iluminar o nosso
caminho no tempo, recordando
os benefícios divinos e
mostrando como se cumprem as
suas promessas.
13. A história de Israel
mostra-nos ainda a tentação
da incredulidade, em que o
povo caiu várias vezes.
Aparece aqui o contrário da
fé: a idolatria. Enquanto
Moisés fala com Deus no
Sinai, o povo não suporta o
mistério do rosto divino
escondido, não suporta o
tempo de espera. Por sua
natureza, a fé pede para se
renunciar à posse imediata
que a visão parece oferecer;
é um convite para se abrir à
fonte da luz, respeitando o
mistério próprio de um Rosto
que pretende revelar-se de
forma pessoal e no momento
oportuno. Martin Buber
citava esta definição da
idolatria, dada pelo rabino
de Kock: há idolatria, «
quando um rosto se dirige
reverente a um rosto que não
é rosto ».[10] Em vez
da fé em Deus, prefere-se
adorar o ídolo, cujo rosto
se pode fixar e cuja origem
é conhecida, porque foi
feito por nós. Diante do
ídolo, não se corre o risco
de uma possível chamada que
nos faça sair das próprias
seguranças, porque os ídolos
« têm boca, mas não falam »
(Sal 115, 5).
Compreende-se assim que o
ídolo é um pretexto para se
colocar a si mesmo no centro
da realidade, na adoração da
obra das próprias mãos.
Perdida a orientação
fundamental que dá unidade à
sua existência, o homem
dispersa-se na
multiplicidade dos seus
desejos; negando-se a
esperar o tempo da promessa,
desintegra-se nos mil
instantes da sua história.
Por isso, a idolatria é
sempre politeísmo, movimento
sem meta de um senhor para
outro. A idolatria não
oferece um caminho, mas uma
multiplicidade de veredas
que não conduzem a uma meta
certa, antes se configuram
como um labirinto. Quem não
quer confiar-se a Deus, deve
ouvir as vozes dos muitos
ídolos que lhe gritam: «
Confia-te a mim! » A fé,
enquanto ligada à conversão,
é o contrário da idolatria:
é separação dos ídolos para
voltar ao Deus vivo, através
de um encontro pessoal.
Acreditar significa
confiar-se a um amor
misericordioso que sempre
acolhe e perdoa, que
sustenta e guia a
existência, que se mostra
poderoso na sua capacidade
de endireitar os desvios da
nossa história. A fé
consiste na disponibilidade
a deixar-se incessantemente transformar
pela chamada de Deus.
Paradoxalmente, neste
voltar-se continuamente para
o Senhor, o homem encontra
uma estrada segura que o
liberta do movimento
dispersivo a que o sujeitam
os ídolos.
14.
Na fé de Israel,
sobressai também a
figura de Moisés, o
mediador. O povo não
pode ver o rosto de
Deus; é Moisés que fala
com Jahvé na montanha e
comunica a todos a
vontade do Senhor. Com
esta presença do
mediador, Israel
aprendeu a caminhar
unido. O acto de fé do
indivíduo insere-se numa
comunidade, no « nós »
comum do povo, que, na
fé, é como um só homem:
« o meu filho
primogénito », assim
Deus designará todo o
Israel (cf. Ex 4,
22). Aqui a mediação não
se torna um obstáculo,
mas uma abertura: no
encontro com os outros,
o olhar abre-se para uma
verdade maior que nós
mesmos. Jean Jacques
Rousseau lamentava-se
por não poder ver Deus
pessoalmente: « Quantos
homens entre mim e Deus!
» [11] « Será assim tão
simples e natural que
Deus tenha ido ter com
Moisés para falar a Jean
Jacques Rousseau? »[12] A
partir de uma concepção
individualista e
limitada do conhecimento
é impossível compreender
o sentido da mediação:
esta capacidade de
participar na visão do
outro, saber
compartilhado que é o
conhecimento próprio do
amor. A fé é um dom
gratuito de Deus, que
exige a humildade e a
coragem de fiar-se e entregar-se
para ver o caminho luminoso
do encontro entre Deus e os
homens, a história da
salvação.
A
plenitude da fé cristã
15.
« Abraão (...)
exultou pensando em ver
o meu dia; viu-o e ficou
feliz » (Jo 8,
56). De acordo com estas
palavras de Jesus, a fé
de Abraão estava
orientada para Ele, de
certo modo era visão
antecipada do seu
mistério. Assim o
entende Santo Agostinho,
quando afirma que os
Patriarcas se salvaram
pela fé; não fé em
Cristo já chegado, mas
fé em Cristo que havia
de vir, fé proclive para
o evento futuro de
Jesus.[13] A fé cristã
está centrada em Cristo;
é confissão de que Jesus
é o Senhor e que Deus O
ressuscitou de entre os
mortos (cf. Rm
10, 9). Todas as linhas
do Antigo Testamento se
concentram em Cristo:
Ele torna-Se o « sim »
definitivo a todas as
promessas, fundamento
último do nosso « Amen »
a Deus (cf. 2 Cor
1, 20). A história de
Jesus é a manifestação
plena da fiabilidade de
Deus. Se Israel
recordava os grandes
actos de amor de Deus,
que formavam o centro da
sua confissão e abriam o
horizonte da sua fé,
agora a vida de Jesus
aparece como o lugar da
intervenção definitiva
de Deus, a suprema
manifestação do seu amor
por nós. A palavra que
Deus nos dirige em Jesus
já não é uma entre
muitas outras, mas a sua
Palavra eterna (cf.
Heb 1,
1-2). Não há nenhuma
garantia maior que Deus
possa dar para nos
certificar do seu amor, como
nos lembra São Paulo (cf.
Rm 8, 31-39). Portanto,
a fé cristã é fé no Amor
pleno, no seu poder eficaz,
na sua capacidade de
transformar o mundo e
iluminar o tempo. « Nós
conhecemos o amor que Deus
nos tem, pois cremos nele »
(1 Jo 4, 16). A fé
identifica, no amor de Deus
manifestado em Jesus, o
fundamento sobre o qual
assenta a realidade e o seu
destino último.
16.
A maior prova da
fiabilidade do amor de
Cristo encontra-se na
sua morte pelo homem. Se
dar a vida pelos amigos
é a maior prova de amor
(cf. Jo 15, 13),
Jesus ofereceu a sua
vida por todos, mesmo
por aqueles que eram
inimigos, para
transformar o coração. É
por isso que os
evangelistas situam, na
hora da Cruz, o momento
culminante do olhar de
fé: naquela hora
resplandece o amor
divino em toda a sua
sublimidade e amplitude.
São João colocará aqui o
seu testemunho solene,
quando, juntamente com a
Mãe de Jesus, contemplou
Aquele que trespassaram
(cf. Jo 19, 37):
« Aquele que viu estas
coisas é que dá
testemunho delas e o seu
testemunho é verdadeiro.
E ele bem sabe que diz a
verdade, para vós
crerdes também » (Jo
19, 35). Na sua obra
O Idiota, Fiódor
Mikhailovich Dostoiévski
faz o protagonista — o
príncipe Myskin — dizer,
à vista do quadro de
Cristo morto no
sepulcro, pintado por
Hans Holbein o Jovem: «
Aquele quadro poderia mesmo fazer perder a fé a
alguém »;[14] de facto,
o quadro representa, de
forma muito crua, os efeitos
destruidores da morte no
corpo de Cristo. E todavia é
precisamente na contemplação
da morte de Jesus que a fé
se reforça e recebe uma luz
fulgurante, é quando ela se
revela como fé no seu amor
inabalável por nós, que é
capaz de penetrar na morte
para nos salvar. Neste amor
que não se subtraiu à morte
para manifestar quanto me
ama, é possível crer; a sua
totalidade vence toda e
qualquer suspeita e permite
confiar-nos plenamente a
Cristo.
17. Ora, a morte de
Cristo desvenda a total
fiabilidade do amor de Deus
à luz da sua ressurreição.
Enquanto ressuscitado,
Cristo é testemunha fiável,
digna de fé (cf. Ap
1, 5; Heb 2, 17),
apoio firme para a nossa fé.
« Se Cristo não ressuscitou,
é vã a vossa fé », afirma
São Paulo (1 Cor 15,
17). Se o amor do Pai não
tivesse feito Jesus
ressurgir dos mortos, se não
tivesse podido restituir a
vida ao seu corpo, não seria
um amor plenamente fiável,
capaz de iluminar também as
trevas da morte. Quando São
Paulo fala da sua nova vida
em Cristo, refere que a vive
« na fé do Filho de Deus que
me amou e a Si mesmo Se
entregou por mim » (Gl
2, 20). Esta « fé do
Filho de Deus » é certamente
a fé do Apóstolo dos gentios
em Jesus, mas supõe também a
fiabilidade de Jesus, que se
funda, sem dúvida, no seu
amor até à morte, mas também no facto de Ele
ser Filho de Deus.
Precisamente porque é o
Filho, porque está radicado
de modo absoluto no Pai,
Jesus pôde vencer a morte e
fazer resplandecer em
plenitude a vida. A nossa
cultura perdeu a noção desta
presença concreta de Deus,
da sua acção no mundo;
pensamos que Deus Se
encontra só no além, noutro
nível de realidade, separado
das nossas relações
concretas. Mas, se fosse
assim, isto é, se Deus fosse
incapaz de agir no mundo, o
seu amor não seria
verdadeiramente poderoso,
verdadeiramente real e, por
conseguinte, não seria
sequer verdadeiro amor,
capaz de cumprir a
felicidade que promete. E,
então, seria completamente
indiferente crer ou não crer
n’Ele. Ao contrário, os
cristãos confessam o amor
concreto e poderoso de Deus,
que actua verdadeiramente na
história e determina o seu
destino final; um amor que
se fez passível de encontro,
que se revelou em plenitude
na paixão, morte e
ressurreição de Cristo.
18.
A plenitude a que
Jesus leva a fé possui
outro aspecto decisivo:
na fé, Cristo não é
apenas Aquele em quem
acreditamos, a maior
manifestação do amor de
Deus, mas é também
Aquele a quem nos unimos
para poder acreditar. A
fé não só olha para
Jesus, mas olha também a
partir da perspectiva de
Jesus e com os seus
olhos: é uma
participação no seu modo
de ver. Em muitos
âmbitos da vida,
fiamo-nos de outras
pessoas que conhecem as
coisas melhor do que
nós: temos confiança no
arquitecto que constrói
a nossa
casa, no farmacêutico que
nos fornece o remédio para a
cura, no advogado que nos
defende no tribunal.
Precisamos também de alguém
que seja fiável e perito nas
coisas de Deus: Jesus, seu
Filho, apresenta-Se
como Aquele que nos explica
Deus (cf. Jo 1, 18).
A vida de Cristo, a sua
maneira de conhecer o Pai,
de viver totalmente em
relação com Ele abre um
espaço novo à experiência
humana, e nós podemos entrar
nele. São João exprimiu a
importância que a relação
pessoal com Jesus tem para a
nossa fé, através de vários
usos do verbo crer.
Juntamente com o « crer que
» é verdade o que Jesus nos
diz (cf. Jo 14, 10;
20, 31), João usa mais duas
expressões: « crer a
(sinónimo de dar crédito a)
» Jesus e « crer em » Jesus.
« Cremos a » Jesus, quando
aceitamos a sua palavra, o
seu testemunho, porque Ele é
verdadeiro (cf. Jo 6,
30). « Cremos em » Jesus,
quando O acolhemos
pessoalmente na nossa vida e
nos confiamos a Ele,
aderindo a Ele no amor e
seguindo-O ao longo do
caminho (cf. Jo 2,
11; 6, 47; 12, 44).
Para nos
permitir conhecê-Lo,
acolhê-Lo e segui-Lo, o
Filho de Deus assumiu a
nossa carne; e, assim, a sua
visão do Pai deu-se também
de forma humana, através de
um caminho e um percurso no
tempo. A fé cristã é fé na
encarnação do Verbo e na sua
ressurreição na carne; é fé
num Deus que Se fez tão
próximo que entrou na nossa
história. A fé no Filho de
Deus feito homem em Jesus de
Nazaré não nos separa da
realidade; antes permite-nos
individuar o seu significado
mais profundo, descobrir
quanto Deus ama este mundo e o
orienta sem cessar para Si;
e isto leva o cristão a
comprometer-se, a viver de
modo ainda mais intenso o
seu caminho sobre a terra.
.
.
A
salvação pela fé
19.
A partir desta
participação no modo de
ver de Jesus, o apóstolo
Paulo deixou-nos, nos
seus escritos, uma
descrição da existência
crente. Aquele que
acredita, ao aceitar o
dom da fé, é
transformado numa nova
criatura, recebe um novo
ser, um ser filial,
torna-se filho no Filho:
« Abbá, Pai » é a
palavra mais
característica da
experiência de Jesus,
que se torna centro da
experiência cristã (cf.
Rm 8, 15). A vida
na fé, enquanto
existência filial, é
reconhecer o dom
originário e radical que
está na base da
existência do homem,
podendo resumir-se nesta
frase de São Paulo aos
Coríntios: « Que tens tu
que não tenhas recebido?
» (1 Cor 4, 7). É
precisamente aqui que se
situa o cerne da
polémica do Apóstolo com
os fariseus: a discussão
sobre a salvação pela fé
ou pelas obras da lei.
Aquilo que São Paulo
rejeita é a atitude de
quem se quer justificar
a si mesmo diante de
Deus através das
próprias obras; esta
pessoa, mesmo quando
obedece aos mandamentos,
mesmo quando realiza
obras boas, coloca-se
a si própria no centro e
não reconhece que a
origem do bem é Deus.
Quem actua assim, quem
quer ser fonte da sua
própria justiça,
depressa a vê exaurir-se
e descobre que não pode
sequer aguentar-se na
fidelidade à lei;
fecha-se, isolando-se
do Senhor e dos outros,
e, por isso, a sua vida torna-se vã, as suas
obras estéreis, como árvore
longe da água. Assim se
exprime Santo Agostinho com
a sua linguagem concisa e
eficaz: « Não te afastes
d’Aquele que te fez, nem
mesmo para te encontrares a
ti ».[15] Quando o
homem pensa que,
afastando-se de Deus,
encontrar-se-á a si mesmo, a
sua existência fracassa (cf.
Lc 15, 11-24). O
início da salvação é a
abertura a algo que nos
antecede, a um dom
originário que sustenta a
vida e a guarda na
existência. Só abrindo-nos a
esta origem e reconhecendo-a
é que podemos ser
transformados, deixando que
a salvação actue em nós e
torne a vida fecunda, cheia
de frutos bons. A salvação
pela fé consiste em
reconhecer o primado do dom
de Deus, como resume São
Paulo: « Porque é pela graça
que estais salvos, por meio
da fé. E isto não vem de
vós, é dom de Deus » (Ef
2, 8).
20. A nova lógica da fé
centra-se em Cristo. A fé em
Cristo salva-nos, porque é
n’Ele que a vida se abre
radicalmente a um Amor que
nos precede e transforma a
partir de dentro, que age em
nós e connosco. Vê-se isto
claramente na exegese que o
Apóstolo dos gentios faz de
um texto do Deuteronómio;
uma exegese que se insere na
dinâmica mais profunda do
Antigo Testamento. Moisés
diz ao povo que o mandamento
de Deus não está demasiado
alto nem demasiado longe do
homem; não se deve dizer: «
Quem subirá por nós até ao céu e no-la
irá buscar? » ou « Quem
atravessará o mar e no-la
irá buscar? » (cf.
Dt 30, 11-14). Esta
proximidade da palavra de
Deus é concretizada por São
Paulo na presença de Jesus
no cristão. « Não digas no
teu coração: Quem subirá ao
céu? Seria para fazer com
que Cristo descesse. Nem
digas: Quem descerá ao
abismo? Seria para fazer com
que Cristo subisse de entre
os mortos » (Rm 10,
6-7). Cristo desceu à terra
e ressuscitou dos mortos:
com a sua encarnação e
ressurreição, o Filho de
Deus abraçou o percurso
inteiro do homem e habita
nos nossos corações por meio
do Espírito Santo. A fé sabe
que Deus Se tornou muito
próximo de nós, que Cristo
nos foi oferecido como
grande dom que nos
transforma interiormente,
que habita em nós, e assim
nos dá a luz que ilumina a
origem e o fim da vida, o
arco inteiro do percurso
humano.
21.
Podemos assim
compreender a novidade,
a que a fé nos conduz. O
crente é transformado
pelo Amor, ao qual se
abriu na fé; e, na sua
abertura a este Amor que
lhe é oferecido, a sua
existência dilata-se
para além dele próprio.
São Paulo pode afirmar:
« Já não sou eu que
vivo, mas é Cristo que
vive em mim » (Gl
2, 20), e exortar: « Que
Cristo, pela fé, habite
nos vossos corações » (Ef
3, 17). Na fé, o «
eu » do crente dilata-se
para ser habitado por um
Outro, para viver num
Outro, e assim a sua
vida amplia-se no Amor.
É aqui que se situa a
acção própria do
Espírito Santo: o
cristão pode ter os
olhos de Jesus, os seus
sentimentos, a sua
predisposição filial, porque
é feito participante
do seu Amor, que é o
Espírito; é neste Amor que
se recebe, de algum modo, a
visão própria de Jesus. Fora
desta conformação no Amor,
fora da presença do Espírito
que o infunde nos nossos
corações (cf. Rm 5,
5), é impossível confessar
Jesus como Senhor (cf. 1
Cor 12, 3).
A forma
eclesial da fé
22.
Deste modo, a vida
do fiel torna-se
existência eclesial.
Quando São Paulo fala
aos cristãos de Roma do
único corpo que todos os
crentes formam em
Cristo, exorta-os a não
se vangloriarem, mas a
avaliarem-se « de acordo
com a medida de fé que
Deus distribuiu a cada
um » (Rm 12, 3).
O crente aprende a
ver-se a si mesmo a
partir da fé que
professa. A figura de
Cristo é o espelho em
que descobre realizada a
sua própria imagem. E
dado que Cristo abraça
em Si mesmo todos os
crentes que formam o seu
corpo, o cristão
compreende-se a si mesmo
neste corpo, em relação
primordial com Cristo e
os irmãos na fé. A
imagem do corpo não
pretende reduzir o
crente a simples parte
de um todo anónimo, a
mero elemento de uma
grande engrenagem;
antes, sublinha a união
vital de Cristo com os
crentes e de todos os
crentes entre si (cf.
Rm 12, 4-5). Os
cristãos sejam « todos
um só » (cf. Gl
3, 28), sem perder a sua
individualidade, e, no
serviço aos outros, cada
um ganha profundamente o
próprio ser.
Compreende-se assim por
que motivo, fora deste
corpo, desta unidade da
Igreja em Cristo
— desta Igreja que,
segundo as palavras de
Romano Guardini, « é a
portadora histórica do olhar
global de Cristo sobre o
mundo »,[16] —, a fé
perca a sua « medida », já
não encontre o seu
equilíbrio, nem o espaço
necessário para se manter de
pé. A fé tem uma forma
necessariamente eclesial, é
professada partindo do corpo
de Cristo, como comunhão
concreta dos crentes. A
partir deste lugar eclesial,
ela abre o indivíduo cristão
a todos os homens. Uma vez
escutada, a palavra de
Cristo, pelo seu próprio
dinamismo, transforma-se em
resposta no cristão,
tornando-se ela mesma
palavra pronunciada,
confissão de fé. São Paulo
afirma: « Realmente com o
coração se crê (…) e com a
boca se faz a profissão de
fé » (Rm 10, 10). A
fé não é um facto privado,
uma concepção
individualista, uma opinião
subjectiva, mas nasce de uma
escuta e destina-se a ser
pronunciada e a tornar-se
anúncio. Com efeito, « como
hão-de acreditar n’Aquele de
quem não ouviram falar? E
como hão-de ouvir falar, sem
alguém que O anuncie? (Rm
10, 14). Concluindo, a
fé torna-se operativa no
cristão a partir do dom
recebido, a partir do Amor
que o atrai para Cristo (cf.
Gl 5, 6) e torna
participante do caminho da
Igreja, peregrina na
história rumo à perfeição.
Para quem foi assim
transformado, abre-se um
novo modo de ver, a fé
torna-se luz para os seus
olhos.
.
.
CAPÍTULO II
SE NÃO ACREDITARDES,
NÃO COMPREENDEREIS
(cf. Is 7, 9)
NÃO COMPREENDEREIS
(cf. Is 7, 9)
Fé e verdade
23.
Se não acreditardes,
não compreendereis (cf.
Is 7, 9): foi
assim que a versão grega
da Bíblia hebraica — a
tradução dos Setenta,
feita em Alexandria do
Egipto — traduziu as
palavras do profeta
Isaías ao rei Acaz,
fazendo aparecer como
central, na fé, a
questão do conhecimento
da verdade. Entretanto,
no texto hebraico, há
uma leitura diferente;
aqui o profeta diz ao
rei: « Se não o
acreditardes, não
subsistireis ». Existe
aqui um jogo de palavras
com duas formas do verbo
‘amàn: «
acreditardes » (ta’aminu)
e « subsistireis » (te’amenu).
Apavorado com a força
dos seus inimigos, o rei
busca a segurança que
lhe pode vir de uma
aliança com o grande
império da Assíria; mas
o profeta convida-o a
confiar apenas na
verdadeira rocha que não
vacila: o Deus de
Israel. Uma vez que Deus
é fiável, é razoável ter
fé n’Ele, construir a
própria segurança sobre
a sua Palavra. Este é o
Deus que Isaías chamará
mais adiante, por duas
vezes, o Deus-Amen, o «
Deus fiel » (cf. Is
65, 16), fundamento
inabalável de fidelidade
à aliança. Poder-se-ia
pensar que a versão
grega da Bíblia,
traduzindo « subsistir »
por « compreender »,
tivesse realizado uma
mudança profunda do
texto, passando da noção
bíblica de
entrega a Deus à noção
grega de compreensão. E no
entanto esta tradução, que
aceitava certamente o
diálogo com a cultura
helenista, não é alheia à
dinâmica profunda do texto
hebraico; a firmeza que
Isaías promete ao rei passa,
realmente, pela compreensão
do agir de Deus e da unidade
que Ele dá à vida do homem e
à história do povo. O
profeta exorta a compreender
os caminhos do Senhor,
encontrando na fidelidade de
Deus o plano de sabedoria
que governa os séculos. Esta
síntese entre o «
compreender » e o «
subsistir » é expressa por
Santo Agostinho, nas suas
Confissões, quando fala
da verdade em que se pode
confiar para conseguirmos
ficar de pé: « Estarei firme
e consolidar-me-ei em Ti,
(…) na tua verdade ».
[17]
Vendo o contexto, sabemos
que este Padre da Igreja
quer mostrar que esta
verdade fidedigna de Deus é,
como resulta da Bíblia, a
sua presença fiel ao longo
da história, a sua
capacidade de manter unidos
os tempos, recolhendo a
dispersão dos dias do
homem.[18]
24. Lido a esta luz, o
texto de Isaías faz-nos
concluir: o homem precisa de
conhecimento, precisa de
verdade, porque sem ela não
se mantém de pé, não
caminha. Sem verdade, a fé
não salva, não torna seguros
os nossos passos. Seria uma
linda fábula, a projecção
dos nossos desejos de
felicidade, algo que nos
satisfaz só na medida em que
nos quisermos iludir; ou
então reduzir-se-ia a um sentimento
bom que consola e afaga, mas
permanece sujeito às nossas
mudanças de ânimo, à
variação dos tempos, incapaz
de sustentar um caminho
constante na vida. Se a fé
fosse isso, então o rei Acaz
teria razão para não jogar a
sua vida e a segurança do
seu reino sobre uma emoção.
Mas não é! Precisamente pela
sua ligação intrínseca com a
verdade, a fé é capaz de
oferecer uma luz nova,
superior aos cálculos do
rei, porque vê mais longe,
compreende o agir de Deus,
que é fiel à sua aliança e
às suas promessas.
25.
Lembrar esta ligação
da fé com a verdade é
hoje mais necessário do
que nunca, precisamente
por causa da crise de
verdade em que vivemos.
Na cultura
contemporânea, tende-se
frequentemente a aceitar
como verdade apenas a da
tecnologia: é verdadeiro
aquilo que o homem
consegue construir e
medir com a sua ciência;
é verdadeiro porque
funciona, e assim torna
a vida mais cómoda e
aprazível. Esta verdade
parece ser, hoje, a
única certa, a única
partilhável com os
outros, a única sobre a
qual se pode
conjuntamente discutir e
comprometer-se; depois
haveria as verdades do
indivíduo, como ser
autêntico face àquilo
que cada um sente no seu
íntimo, válidas apenas
para o sujeito mas que
não podem ser propostas
aos outros com a
pretensão de servir o
bem comum. A verdade
grande, aquela que
explica o conjunto da
vida pessoal e social, é
vista com suspeita.
Porventura não foi esta
— perguntam-se — a
verdade pretendida pelos
grandes totalitarismos
do século passado, uma
verdade que impunha a
própria concepção global
para esmagar a história
concreta do indivíduo? No
fim, resta apenas um
relativismo, no qual a
questão sobre a verdade de
tudo — que, no fundo, é
também a questão de Deus —
já não interessa. Nesta
perspectiva, é lógico que se
pretenda eliminar a ligação
da religião com a verdade,
porque esta associação
estaria na raiz do
fanatismo, que quer emudecer
quem não partilha da crença
própria. A este respeito,
pode-se falar de uma
grande obnubilação da
memória no nosso mundo
contemporâneo; de facto, a
busca da verdade é uma
questão de memória, de
memória profunda, porque
visa algo que nos precede e,
desta forma, pode conseguir
unir-nos para além do nosso
« eu » pequeno e limitado; é
uma questão relativa à
origem de tudo, a cuja luz
se pode ver a meta e também
o sentido da estrada comum.
Conhecimento da verdade e
amor
26.
Nesta situação,
poderá a fé cristã
prestar um serviço ao
bem comum relativamente
à maneira correcta de
entender a verdade? Para
termos uma resposta, é
necessário reflectir
sobre o tipo de
conhecimento próprio da
fé. Pode ajudar-nos esta
frase de Paulo: «
Acredita-se com o
coração » (Rm 10,
10). Este, na Bíblia, é
o centro do homem, onde
se entrecruzam todas as
suas dimensões: o corpo
e o espírito, a
interioridade da pessoa
e a sua abertura ao
mundo e aos outros, a
inteligência, a vontade,
a afectividade. O
coração pode
manter unidas estas
dimensões, porque é o lugar
onde nos abrimos à verdade e
ao amor, deixando que nos
toquem e transformem
profundamente. A fé
transforma a pessoa inteira,
precisamente na medida em
que ela se abre ao amor; é
neste entrelaçamento da fé
com o amor que se compreende
a forma de conhecimento
própria da fé, a sua força
de convicção, a sua
capacidade de iluminar os
nossos passos. A fé conhece
na medida em que está ligada
ao amor, já que o próprio
amor traz uma luz. A
compreensão da fé é aquela
que nasce quando recebemos o
grande amor de Deus, que nos
transforma interiormente e
nos dá olhos novos para ver
a realidade.
27. É conhecido o modo
como o filósofo Ludwig
Wittgenstein explicou a
ligação entre a fé e a
certeza. Segundo ele,
acreditar seria comparável à
experiência do enamoramento,
concebida como algo de
subjectivo, impossível de
propor como verdade válida
para todos.[19] De
facto, aos olhos do homem
moderno, parece que a
questão do amor não teria
nada a ver com a verdade; o
amor surge, hoje, como uma
experiência ligada, não à
verdade, mas ao mundo
inconstante dos sentimentos.
Mas, será
esta verdadeiramente uma
descrição adequada do amor?
Na realidade, o amor não se
pode reduzir a um sentimento
que vai e vem. É verdade que
o amor tem a ver com a nossa
afectividade, mas para a
abrir à pessoa amada, e
assim iniciar um caminho que
faz sair da reclusão no
próprio eu e dirigir-se para
a outra pessoa, a fim de
construir uma relação
duradoura; o amor visa a
união com a pessoa amada. E
aqui se manifesta em que
sentido o amor tem
necessidade da verdade:
apenas na medida em que o
amor estiver fundado na
verdade é que pode perdurar
no tempo, superar o instante
efémero e permanecer firme
para sustentar um caminho
comum. Se o amor não tivesse
relação com a verdade,
estaria sujeito à alteração
dos sentimentos e não
superaria a prova do tempo.
Diversamente, o amor
verdadeiro unifica todos os
elementos da nossa
personalidade e torna-se uma
luz nova que aponta para uma
vida grande e plena. Sem a
verdade, o amor não pode
oferecer um vínculo sólido,
não consegue arrancar o « eu
» para fora do seu
isolamento, nem libertá-lo
do instante fugidio para
edificar a vida e produzir
fruto.
Se o amor
tem necessidade da verdade,
também a verdade precisa do
amor; amor e verdade não se
podem separar. Sem o amor, a
verdade torna-se fria,
impessoal, gravosa para a
vida concreta da pessoa. A
verdade que buscamos, a
verdade que dá significado
aos nossos passos,
ilumina-nos quando somos
tocados pelo amor. Quem ama,
compreende que o amor é
experiência da verdade,
compreende que é
precisamente ele que abre os
nossos olhos para verem a
realidade inteira, de
maneira nova, em união com a
pessoa amada. Neste sentido,
escreveu São Gregório Magno que
o próprio amor é um
conhecimento, [20] traz
consigo uma lógica nova.
Trata-se de um modo
relacional de olhar o mundo,
que se torna conhecimento
partilhado, visão na visão
do outro e visão comum sobre
todas as coisas. Na Idade
Média, Guilherme de Saint
Thierry adopta esta
tradição, ao comentar um
versículo do Cântico dos
Cânticos no qual o amado diz
à amada: « Como são lindos
os teus olhos de pomba! » (Ct
1, 15). [21] Estes dois
olhos — explica Saint
Thierry — são a razão crente
e o amor, que se tornam um
único olhar para chegar à
contemplação de Deus, quando
a inteligência se faz «
entendimento de um amor
iluminado ». [22]
28.
Esta descoberta do
amor como fonte de
conhecimento, que
pertence à experiência
primordial de cada
homem, encontra uma
expressão categorizada
na concepção bíblica da
fé. Israel, saboreando o
amor com que Deus o
escolheu e gerou como
povo, chega a
compreender a unidade do
desígnio divino, desde a
origem à sua realização.
O conhecimento da fé,
pelo facto de nascer do
amor de Deus que
estabelece a Aliança, é
conhecimento que ilumina
um caminho na história.
É por isso também que,
na Bíblia, verdade e
fidelidade caminham
juntas: o Deus verdadeiro é o Deus fiel,
Aquele que mantém as suas
promessas e permite,
com o decorrer do tempo,
compreender o seu desígnio.
Através da experiência dos
profetas, no sofrimento do
exílio e na esperança de um
regresso definitivo à Cidade
Santa, Israel intuiu que
esta verdade de Deus se
estendia mais além da
própria história, abraçando
a história inteira do mundo
a começar da criação. O
conhecimento da fé ilumina
não só o caminho particular
de um povo, mas também o
percurso inteiro do mundo
criado, desde a origem até à
sua consumação.
A fé como escuta e visão
29. Justamente porque o conhecimento da fé está ligado à aliança de um Deus fiel, que estabelece uma relação de amor com o homem e lhe dirige a Palavra, é apresentado pela Bíblia como escuta, aparece associado com o ouvido. São Paulo usará uma fórmula que se tornou clássica: « fides ex auditu — a fé vem da escuta » (Rm 10, 17). O conhecimento associado à palavra é sempre conhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lhe abre livremente e a segue obedientemente. Por isso, São Paulo falou da « obediência da fé » (cf. Rm 1, 5; 16, 26).[23] Além disso, a fé é conhecimento ligado ao transcorrer do tempo que a palavra necessita para ser explicitada: é conhecimento que só se aprende num percurso de seguimento. A escuta ajuda a identificar bem o nexo entre conhecimento e amor. A propósito do conhecimento da verdade, pretendeu-se por vezes contrapor a escuta à visão, a qual seria peculiar da cultura grega. Se a luz, por um lado, oferece a contemplação da totalidade a que o homem sempre aspirou, por outro, parece não deixar espaço à liberdade, pois desce do céu e chega directamente à vista, sem lhe pedir que responda. Além disso, parece convidar a uma contemplação estática, separada do tempo concreto em que o homem goza e sofre. Segundo esta concepção, haveria oposição entre a abordagem bíblica do conhecimento e a grega, a qual, na sua busca duma compreensão completa da realidade, teria associado o conhecimento com a visão.
A fé como escuta e visão
29. Justamente porque o conhecimento da fé está ligado à aliança de um Deus fiel, que estabelece uma relação de amor com o homem e lhe dirige a Palavra, é apresentado pela Bíblia como escuta, aparece associado com o ouvido. São Paulo usará uma fórmula que se tornou clássica: « fides ex auditu — a fé vem da escuta » (Rm 10, 17). O conhecimento associado à palavra é sempre conhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lhe abre livremente e a segue obedientemente. Por isso, São Paulo falou da « obediência da fé » (cf. Rm 1, 5; 16, 26).[23] Além disso, a fé é conhecimento ligado ao transcorrer do tempo que a palavra necessita para ser explicitada: é conhecimento que só se aprende num percurso de seguimento. A escuta ajuda a identificar bem o nexo entre conhecimento e amor. A propósito do conhecimento da verdade, pretendeu-se por vezes contrapor a escuta à visão, a qual seria peculiar da cultura grega. Se a luz, por um lado, oferece a contemplação da totalidade a que o homem sempre aspirou, por outro, parece não deixar espaço à liberdade, pois desce do céu e chega directamente à vista, sem lhe pedir que responda. Além disso, parece convidar a uma contemplação estática, separada do tempo concreto em que o homem goza e sofre. Segundo esta concepção, haveria oposição entre a abordagem bíblica do conhecimento e a grega, a qual, na sua busca duma compreensão completa da realidade, teria associado o conhecimento com a visão.
Mas tal
suposta oposição não é
corroborada de forma alguma
pelos dados bíblicos: o
Antigo Testamento combinou
os dois tipos de
conhecimento, unindo a
escuta da Palavra de Deus
com o desejo de ver o seu
rosto. Isto tornou possível
entabular diálogo com a
cultura helenista, um diálogo
que pertence ao coração da
Escritura. O ouvido atesta não só a
chamada pessoal e a
obediência, mas também que a
verdade se revela no tempo;
a vista, por sua vez,
oferece a visão plena de
todo o percurso, permitindo
situar-nos no grande
projecto de Deus; sem tal
visão, disporíamos apenas
de fragmentos isolados de um
todo desconhecido.
30.
A conexão entre o
ver e o ouvir, como
órgãos do conhecimento
da fé, aparece com a
máxima clareza no
Evangelho de João, onde
acreditar é
simultaneamente ouvir e
ver. A escuta da fé
verifica-se segundo a
forma de conhecimento
própria do amor: é uma
escuta pessoal, que
distingue e reconhece a
voz do Bom Pastor (cf.
Jo 10, 3-5); uma
escuta que requer o
seguimento, como
acontece com os
primeiros discípulos
que, « ouvindo [João
Baptista] falar desta
maneira, seguiram Jesus
» (Jo 1, 37). Por
outro lado, a fé está
ligada também com a
visão: umas vezes, a
visão dos sinais de
Jesus precede a fé, como
sucede com os judeus
que, depois da
ressurreição de Lázaro,
« ao verem o que Jesus
fez, creram n’Ele » (Jo
11, 45); outras
vezes, é a fé que leva a
uma visão mais profunda:
« Se acreditares, verás
a glória de Deus » (Jo
11, 40). Por fim,
acreditar e ver
cruzam-se: « Quem crê em
Mim (...) crê n’Aquele
que Me enviou; e quem Me
vê a Mim, vê Aquele que
me enviou » (Jo
12, 44-45). O ver,
graças à sua união com o
ouvir, torna-se
seguimento de Cristo; e
a fé aparece como um
caminho do olhar em
que os olhos se habituam
a ver em profundidade. E
assim, na manhã de Páscoa,
de João — que, ainda na
escuridão perante o túmulo
vazio, « viu e começou a
crer » (Jo 20, 8) —
passa-se a Maria Madalena —
que já vê Jesus (cf. Jo
20, 14) e quer retê-Lo,
mas é convidada a
contemplá-Lo no seu caminho
para o Pai — até à plena
confissão da própria
Madalena diante dos
discípulos: « Vi o Senhor! »
(Jo 20, 18).
Como se
chega a esta síntese entre o
ouvir e o ver? A partir da
pessoa concreta de Jesus,
que Se vê e escuta. Ele é a
Palavra que Se fez carne e
cuja glória contemplámos
(cf. Jo 1, 14). A luz
da fé é a luz de um Rosto,
no qual se vê o Pai. De
facto, no quarto Evangelho,
a verdade que a fé apreende
é a manifestação do Pai no
Filho, na sua carne e nas
suas obras terrenas; verdade
essa, que se pode definir
como a « vida luminosa » de
Jesus.[24] Isto
significa que o conhecimento
da fé não nos convida a
olhar uma verdade puramente
interior; a verdade que a fé
nos descerra é uma verdade
centrada no encontro com
Cristo, na contemplação da
sua vida, na percepção da
sua presença. Neste sentido
e a propósito da visão
corpórea do Ressuscitado,
São Tomás de Aquino fala de
oculata fides (uma fé
que vê) dos Apóstolos:[25]
viram Jesus ressuscitado com
os seus olhos e acreditaram, isto é,
puderam penetrar na
profundidade daquilo que
viam para confessar o Filho
de Deus, sentado à direita
do Pai.
31.
Só assim, através da
encarnação, através da
partilha da nossa
humanidade, podia chegar
à plenitude o
conhecimento próprio do
amor. De facto, a luz do
amor nasce quando somos
tocados no coração,
recebendo assim, em nós,
a presença interior do
amado, que nos permite
reconhecer o seu
mistério. Compreendemos
agora por que motivo,
para João, a fé seja,
juntamente com o escutar
e o ver, um tocar, como
nos diz na sua Primeira
Carta: « O que ouvimos,
o que vimos (…) e as
nossas mãos tocaram
relativamente ao Verbo
da Vida… » (1 Jo
1, 1). Por meio da sua
encarnação, com a sua
vinda entre nós, Jesus
tocou-nos e, através dos
sacramentos, ainda hoje
nos toca; desta forma,
transformando o nosso
coração, permitiu-nos —
e permite-nos —
reconhecê-Lo e
confessá-Lo como Filho
de Deus. Pela fé,
podemos tocá-Lo e
receber a força da sua
graça. Santo Agostinho,
comentando a passagem da
hemorroíssa que toca
Jesus para ser curada
(cf. Lc 8,
45-46), afirma: « Tocar
com o coração, isto é
crer ».[26] A multidão
comprime-se ao redor de
Jesus, mas não O alcança
com aquele toque pessoal
da fé que reconhece o
seu mistério, o seu ser
Filho que manifesta o
Pai. Só quando somos configurados com
Jesus é que recebemos
o olhar adequado para O ver.
O diálogo entre fé e razão
32. A fé cristã, enquanto anuncia a verdade do amor total de Deus e abre para a força deste amor, chega ao centro mais profundo da experiência de cada homem, que vem à luz graças ao amor e é chamado ao amor para permanecer na luz. Movidos pelo desejo de iluminar a realidade inteira a partir do amor de Deus manifestado em Jesus e procurando amar com este mesmo amor, os primeiros cristãos encontraram no mundo grego, na sua fome de verdade, um parceiro idóneo para o diálogo. O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no decurso dos séculos até aos nossos dias. O Beato João Paulo II, na sua carta encíclica Fides et ratio, mostrou como fé e razão se reforçam mutuamente. [27] Depois de ter encontrado a luz plena do amor de Jesus, descobrimos que havia, em todo o nosso amor, um lampejo daquela luz e compreendemos qual era a sua meta derradeira; e, simultaneamente, o facto de o nosso amor trazer em si uma luz ajuda-nos a ver o caminho do amor rumo à plenitude da doação total do Filho de Deus por nós. Neste movimento circular, a luz da fé ilumina todas as nossas relações humanas, que podem ser vividas em união com o amor e a ternura de Cristo. 33. Na vida de Santo Agostinho, encontramos um exemplo significativo deste caminho: a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão. Por um lado, acolhe a filosofia grega da luz com a sua insistência na visão: o seu encontro com o neoplatonismo fez-lhe conhecer o paradigma da luz, que desce do alto para iluminar as coisas, tornando-se assim um símbolo de Deus. Desta maneira, Santo Agostinho compreendeu a transcendência divina e descobriu que todas as coisas possuem em si uma transparência, isto é, que podiam reflectir a bondade de Deus, o Bem; assim se libertou do maniqueísmo, em que antes vivia, que o inclinava a pensar que o bem e o mal lutassem continuamente entre si, confundindo-se e misturando-se, sem contornos claros. O facto de ter compreendido que Deus é luz deu à sua existência uma nova orientação, a capacidade de reconhecer o mal de que era culpado e voltar-se para o bem.
O diálogo entre fé e razão
32. A fé cristã, enquanto anuncia a verdade do amor total de Deus e abre para a força deste amor, chega ao centro mais profundo da experiência de cada homem, que vem à luz graças ao amor e é chamado ao amor para permanecer na luz. Movidos pelo desejo de iluminar a realidade inteira a partir do amor de Deus manifestado em Jesus e procurando amar com este mesmo amor, os primeiros cristãos encontraram no mundo grego, na sua fome de verdade, um parceiro idóneo para o diálogo. O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no decurso dos séculos até aos nossos dias. O Beato João Paulo II, na sua carta encíclica Fides et ratio, mostrou como fé e razão se reforçam mutuamente. [27] Depois de ter encontrado a luz plena do amor de Jesus, descobrimos que havia, em todo o nosso amor, um lampejo daquela luz e compreendemos qual era a sua meta derradeira; e, simultaneamente, o facto de o nosso amor trazer em si uma luz ajuda-nos a ver o caminho do amor rumo à plenitude da doação total do Filho de Deus por nós. Neste movimento circular, a luz da fé ilumina todas as nossas relações humanas, que podem ser vividas em união com o amor e a ternura de Cristo. 33. Na vida de Santo Agostinho, encontramos um exemplo significativo deste caminho: a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão. Por um lado, acolhe a filosofia grega da luz com a sua insistência na visão: o seu encontro com o neoplatonismo fez-lhe conhecer o paradigma da luz, que desce do alto para iluminar as coisas, tornando-se assim um símbolo de Deus. Desta maneira, Santo Agostinho compreendeu a transcendência divina e descobriu que todas as coisas possuem em si uma transparência, isto é, que podiam reflectir a bondade de Deus, o Bem; assim se libertou do maniqueísmo, em que antes vivia, que o inclinava a pensar que o bem e o mal lutassem continuamente entre si, confundindo-se e misturando-se, sem contornos claros. O facto de ter compreendido que Deus é luz deu à sua existência uma nova orientação, a capacidade de reconhecer o mal de que era culpado e voltar-se para o bem.
Mas, por
outro lado, na experiência
concreta de Agostinho, que
ele próprio narra nas suas
Confissões, o momento
decisivo no seu caminho de
fé não foi uma visão de Deus
para além deste mundo, mas a
escuta, quando no jardim
ouviu uma voz que lhe dizia:
« Toma e lê »; ele pegou no tomo
com as Cartas de São Paulo,
detendo-se no capítulo
décimo terceiro da Carta aos
Romanos.[28] Temos aqui
o Deus pessoal da Bíblia,
capaz de falar ao homem,
descer para viver com ele e
acompanhar o seu caminho na
história, manifestando-Se no
tempo da escuta e da
resposta.
Mas, este
encontro com o Deus da
Palavra não levou Santo
Agostinho a rejeitar a luz e
a visão, mas integrou ambas
as perspectivas, guiado
sempre pela revelação do
amor de Deus em Jesus. Deste
modo, elaborou uma filosofia
da luz que reúne em
si a reciprocidade própria
da palavra e abre um espaço
à liberdade própria do olhar
para a luz: tal como à
palavra corresponde uma
resposta livre, assim também
a luz encontra como resposta
uma imagem que a reflecte.
Deste modo, associando
escuta e visão, Santo
Agostinho pôde referir-se à
« palavra que resplandece no
interior do homem ».[29] A luz
torna-se, por assim dizer, a
luz de uma palavra, porque é
a luz de um Rosto pessoal,
uma luz que, ao
iluminar-nos, nos chama e
quer reflectir-se no nosso
rosto para resplandecer a
partir do nosso íntimo. Por
outro lado, o desejo da
visão do todo, e não apenas
dos fragmentos da história,
continua presente e
cumprir-se-á no fim, quando
o homem — como diz o Santo
de Hipona — poderá ver e
amar;[30] e isto, não por ser
capaz de possuir a luz toda,
já que esta será sempre
inexaurível, mas por entrar,
todo inteiro, na luz.
34.
A luz do amor,
própria da fé, pode
iluminar as perguntas do
nosso tempo acerca da
verdade. Muitas vezes,
hoje, a verdade é
reduzida a autenticidade
subjectiva do indivíduo,
válida apenas para a
vida individual. Uma
verdade comum mete-nos
medo, porque a
identificamos — como
dissemos atrás — com a
imposição intransigente
dos totalitarismos; mas,
se ela é a verdade do
amor, se é a verdade que
se mostra no encontro
pessoal com o Outro e
com os outros, então
fica livre da reclusão
no indivíduo e pode
fazer parte do bem
comum. Sendo a verdade
de um amor, não é
verdade que se impõe
pela violência, não é
verdade que esmaga o
indivíduo; nascendo do
amor pode chegar ao
coração, ao centro
pessoal de cada homem;
daqui resulta claramente
que a fé não é
intransigente, mas
cresce na convivência
que respeita o outro. O
crente não é arrogante;
pelo contrário, a
verdade torna-o humilde,
sabendo que, mais do que
possuirmo-la nós, é ela
que nos abraça e possui.
Longe de nos endurecer,
a segurança da fé
põe-nos a caminho e
torna possível o
testemunho e o diálogo
com todos.
Por outro lado, enquanto
unida à verdade do amor, a
luz da fé não é alheia ao
mundo material, porque o
amor vive-se sempre com
corpo e alma; a luz da fé é
luz encarnada, que dimana da
vida luminosa de Jesus. A fé
ilumina também a matéria,
confia na sua ordem, sabe
que nela se abre um
caminho cada vez mais amplo
de harmonia e compreensão.
Deste modo, o olhar da
ciência tira benefício da
fé: esta convida o cientista
a permanecer aberto à
realidade, em toda a sua
riqueza inesgotável. A fé
desperta o sentido crítico,
enquanto impede a pesquisa
de se deter, satisfeita, nas
suas fórmulas e ajuda-a a
compreender que a natureza
sempre as ultrapassa.
Convidando a maravilhar-se
diante do mistério da
criação, a fé alarga os
horizontes da razão para
iluminar melhor o mundo que
se abre aos estudos da
ciência.
.
.
A fé e a
busca de Deus
35. A luz da fé em Jesus ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e oferece a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões. A Carta aos Hebreus fala-nos do testemunho dos justos que, antes da Aliança com Abraão, já procuravam a Deus com fé; lá se diz, a propósito de Henoc, que « tinha agradado a Deus », sendo isso impossível sem a fé, porque « quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que O procuram » (Heb 11, 5.6). Deste modo, é possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de um Deus que cuida dele e que Se pode encontrar. Que outra recompensa poderia Deus oferecer àqueles que O buscam, senão deixar-Se encontrar a Si mesmo? Ainda antes de Henoc, encontramos a figura de Abel, de quem se louva igualmente a fé, em virtude da qual foram agradáveis a Deus os seus dons, a oferenda dos primogénitos dos seus rebanhos (cf. Heb 11, 4). O homem religioso procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências diárias da sua vida, no ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo o movimento do universo. Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por aqueles que O buscam de coração sincero. Imagem desta busca são os Magos, guiados pela estrela até Belém (cf. Mt 2, 1-12). A luz de Deus mostrou-se-lhes como caminho, como estrela que os guia ao longo duma estrada a descobrir. Deste modo, a estrela fala da paciência de Deus com os nossos olhos, que devem habituar-se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, o homem religioso deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para encontrar o Deus que não cessa de nos surpreender. Este respeito de Deus pelos olhos do homem mostra-nos que, quando o homem se aproxima d’Ele, a luz humana não se dissolve na imensidão luminosa de Deus, como se fosse um estrela absorvida pela aurora, mas torna-se tanto mais brilhante quanto mais perto fica do fogo gerador, como um espelho que reflecte o resplendor. A confissão de Jesus, único Salvador, afirma que toda a luz de Deus se concentrou n’Ele, na sua « vida luminosa », em que se revela a origem e a consumação da história.[31] Não há nenhuma experiência humana, nenhum itinerário do homem para Deus que não possa ser acolhido, iluminado e purificado por esta luz. Quanto mais o cristão penetrar no círculo aberto pela luz de Cristo, tanto mais será capaz de compreender e acompanhar o caminho de cada homem para Deus.
35. A luz da fé em Jesus ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e oferece a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões. A Carta aos Hebreus fala-nos do testemunho dos justos que, antes da Aliança com Abraão, já procuravam a Deus com fé; lá se diz, a propósito de Henoc, que « tinha agradado a Deus », sendo isso impossível sem a fé, porque « quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que O procuram » (Heb 11, 5.6). Deste modo, é possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de um Deus que cuida dele e que Se pode encontrar. Que outra recompensa poderia Deus oferecer àqueles que O buscam, senão deixar-Se encontrar a Si mesmo? Ainda antes de Henoc, encontramos a figura de Abel, de quem se louva igualmente a fé, em virtude da qual foram agradáveis a Deus os seus dons, a oferenda dos primogénitos dos seus rebanhos (cf. Heb 11, 4). O homem religioso procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências diárias da sua vida, no ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo o movimento do universo. Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por aqueles que O buscam de coração sincero. Imagem desta busca são os Magos, guiados pela estrela até Belém (cf. Mt 2, 1-12). A luz de Deus mostrou-se-lhes como caminho, como estrela que os guia ao longo duma estrada a descobrir. Deste modo, a estrela fala da paciência de Deus com os nossos olhos, que devem habituar-se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, o homem religioso deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para encontrar o Deus que não cessa de nos surpreender. Este respeito de Deus pelos olhos do homem mostra-nos que, quando o homem se aproxima d’Ele, a luz humana não se dissolve na imensidão luminosa de Deus, como se fosse um estrela absorvida pela aurora, mas torna-se tanto mais brilhante quanto mais perto fica do fogo gerador, como um espelho que reflecte o resplendor. A confissão de Jesus, único Salvador, afirma que toda a luz de Deus se concentrou n’Ele, na sua « vida luminosa », em que se revela a origem e a consumação da história.[31] Não há nenhuma experiência humana, nenhum itinerário do homem para Deus que não possa ser acolhido, iluminado e purificado por esta luz. Quanto mais o cristão penetrar no círculo aberto pela luz de Cristo, tanto mais será capaz de compreender e acompanhar o caminho de cada homem para Deus.
Configurando-se como
caminho, a fé tem a
ver também com a vida dos
homens que, apesar de não
acreditar, desejam-no fazer
e não cessam de procurar. Na
medida em que se abrem, de
coração sincero, ao amor e
se põem a caminho com a luz
que conseguem captar, já
vivem — sem o saber — no
caminho para a fé: procuram
agir como se Deus existisse,
seja porque reconhecem a sua
importância para encontrar
directrizes firmes na vida
comum, seja porque sentem o
desejo de luz no meio da
escuridão, seja ainda
porque, notando como é
grande e bela a vida, intuem
que a presença de Deus ainda
a tornaria maior. Santo
Ireneu de Lião refere que
Abraão, antes de ouvir a voz
de Deus, já O procurava «
com o desejo ardente do seu
coração » e « percorria todo
o mundo, perguntando-se onde
pudesse estar Deus », até
que « Deus teve piedade
daquele que, sozinho, O
procurava no silêncio ».[32]
Quem se põe a caminho para
praticar o bem, já se
aproxima de Deus, já está
sustentado pela sua ajuda,
porque é próprio da dinâmica
da luz divina iluminar os
nossos olhos, quando
caminhamos para a plenitude
do amor.
.
.
Fé e
teologia
36. Como luz que é, a fé convida-nos a penetrar nela, a explorar sempre mais o horizonte que ilumina, para conhecer melhor o que amamos. Deste desejo nasce a teologia cristã; assim, é claro que a teologia é impossível sem a fé e pertence ao próprio movimento da fé, que procura a compreensão mais profunda da auto-revelação de Deus, culminada no Mistério de Cristo. A primeira consequência é que, na teologia, não se verifica apenas um esforço da razão para perscrutar e conhecer, como nas ciências experimentais. Deus não pode ser reduzido a objecto; Ele é Sujeito que Se dá a conhecer e manifesta na relação pessoa a pessoa. A fé recta orienta a razão para se abrir à luz que vem de Deus, a fim de que ela, guiada pelo amor à verdade, possa conhecer Deus de forma mais profunda. Os grandes doutores e teólogos medievais declararam que a teologia, enquanto ciência da fé, é uma participação no conhecimento que Deus tem de Si mesmo. Por isso, a teologia não é apenas palavra sobre Deus, mas, antes de tudo, acolhimento e busca de uma compreensão mais profunda da palavra que Deus nos dirige: palavra que Deus pronuncia sobre Si mesmo, porque é um diálogo eterno de comunhão, no âmbito do qual é admitido o homem.[33] Assim, é própria da teologia a humildade, que se deixa « tocar » por Deus, reconhece os seus limites face ao Mistério e se encoraja a explorar, com a disciplina própria da razão, as riquezas insondáveis deste Mistério. Além disso, a teologia partilha a forma eclesial da fé; a sua luz é a luz do sujeito crente que é a Igreja. Isto implica, por um lado, que a teologia esteja ao serviço da fé dos cristãos, vise humildemente preservar e aprofundar o crer de todos, sobretudo dos mais simples; e por outro, dado que vive da fé, a teologia não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos seus momentos internos constitutivos, enquanto o magistério assegura o contacto com a fonte originária, oferecendo assim a certeza de beber na Palavra de Cristo em toda a sua integridade.
36. Como luz que é, a fé convida-nos a penetrar nela, a explorar sempre mais o horizonte que ilumina, para conhecer melhor o que amamos. Deste desejo nasce a teologia cristã; assim, é claro que a teologia é impossível sem a fé e pertence ao próprio movimento da fé, que procura a compreensão mais profunda da auto-revelação de Deus, culminada no Mistério de Cristo. A primeira consequência é que, na teologia, não se verifica apenas um esforço da razão para perscrutar e conhecer, como nas ciências experimentais. Deus não pode ser reduzido a objecto; Ele é Sujeito que Se dá a conhecer e manifesta na relação pessoa a pessoa. A fé recta orienta a razão para se abrir à luz que vem de Deus, a fim de que ela, guiada pelo amor à verdade, possa conhecer Deus de forma mais profunda. Os grandes doutores e teólogos medievais declararam que a teologia, enquanto ciência da fé, é uma participação no conhecimento que Deus tem de Si mesmo. Por isso, a teologia não é apenas palavra sobre Deus, mas, antes de tudo, acolhimento e busca de uma compreensão mais profunda da palavra que Deus nos dirige: palavra que Deus pronuncia sobre Si mesmo, porque é um diálogo eterno de comunhão, no âmbito do qual é admitido o homem.[33] Assim, é própria da teologia a humildade, que se deixa « tocar » por Deus, reconhece os seus limites face ao Mistério e se encoraja a explorar, com a disciplina própria da razão, as riquezas insondáveis deste Mistério. Além disso, a teologia partilha a forma eclesial da fé; a sua luz é a luz do sujeito crente que é a Igreja. Isto implica, por um lado, que a teologia esteja ao serviço da fé dos cristãos, vise humildemente preservar e aprofundar o crer de todos, sobretudo dos mais simples; e por outro, dado que vive da fé, a teologia não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos seus momentos internos constitutivos, enquanto o magistério assegura o contacto com a fonte originária, oferecendo assim a certeza de beber na Palavra de Cristo em toda a sua integridade.
CAPÍTULO III
TRANSMITO-VOS
AQUILO QUE RECEBI
(cf. 1 Cor 15, 3)
(cf. 1 Cor 15, 3)
A Igreja,
mãe da nossa fé
37. Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom para si mesmo. Uma vez que é escuta e visão, a fé transmite-se também como palavra e como luz; dirigindo-se aos Coríntios, o apóstolo Paulo utiliza precisamente estas duas imagens. Por um lado, diz: « Animados do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso falamos » (2 Cor 4, 13); a palavra recebida faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os outros, convidando-os a crer. Por outro, São Paulo refere-se também à luz: « E nós todos que, com o rosto descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem » (2 Cor 3, 18); é uma luz que se reflecte de rosto em rosto, como sucedeu com Moisés cujo rosto reflectia a glória de Deus depois de ter falado com Ele: « [Deus] brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo » (2 Cor 4, 6). A luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho, e assim se difunde chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e reflectir para outros a sua luz, da mesma forma que a luz do círio, na liturgia de Páscoa, acende muitas outras velas. A fé transmite-se por assim dizer sob a forma de contacto, de pessoa a pessoa, como uma chama se acende noutra chama. Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma semente tão fecunda que se torna uma grande árvore, capaz de encher o mundo de frutos. 38. A transmissão da fé, que brilha para as pessoas de todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em geração. Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina o nosso caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de Jesus. Como é possível isto? Como se pode estar seguro de beber no « verdadeiro Jesus » através dos séculos? Se o homem fosse um indivíduo isolado, se quiséssemos partir apenas do « eu » individual, que pretende encontrar em si mesmo a firmeza do seu conhecimento, tal certeza seria impossível; não posso, por mim mesmo, ver aquilo que aconteceu numa época tão distante de mim. Mas, esta não é a única maneira de o homem conhecer; a pessoa vive sempre em relação: provém de outros, pertence a outros, a sua vida torna-se maior no encontro com os outros; o próprio conhecimento e consciência de nós mesmos são de tipo relacional e estão ligados a outros que nos precederam, a começar pelos nossos pais que nos deram a vida e o nome. A própria linguagem, as palavras com que interpretamos a nossa vida e a realidade inteira chegam-nos através dos outros, conservadas na memória viva de outros; o conhecimento de nós mesmos só é possível quando participamos duma memória mais ampla. O mesmo acontece com a fé, que leva à plenitude o modo humano de entender: o passado da fé, aquele acto de amor de Jesus que gerou no mundo uma vida nova, chega até nós na memória de outros, das testemunhas, guardado vivo naquele sujeito único de memória que é a Igreja; esta é uma Mãe que nos ensina a falar a linguagem da fé. São João insistiu sobre este aspecto no seu Evangelho, unindo conjuntamente fé e memória e associando as duas à acção do Espírito Santo que, como diz Jesus, « há-de recordar-vos tudo » (Jo 14, 26). O Amor, que é o Espírito e que habita na Igreja, mantém unidos entre si todos os tempos e faz-nos contemporâneos de Jesus, tornando-Se assim o guia do nosso caminho na fé.
37. Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom para si mesmo. Uma vez que é escuta e visão, a fé transmite-se também como palavra e como luz; dirigindo-se aos Coríntios, o apóstolo Paulo utiliza precisamente estas duas imagens. Por um lado, diz: « Animados do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso falamos » (2 Cor 4, 13); a palavra recebida faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os outros, convidando-os a crer. Por outro, São Paulo refere-se também à luz: « E nós todos que, com o rosto descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem » (2 Cor 3, 18); é uma luz que se reflecte de rosto em rosto, como sucedeu com Moisés cujo rosto reflectia a glória de Deus depois de ter falado com Ele: « [Deus] brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo » (2 Cor 4, 6). A luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho, e assim se difunde chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e reflectir para outros a sua luz, da mesma forma que a luz do círio, na liturgia de Páscoa, acende muitas outras velas. A fé transmite-se por assim dizer sob a forma de contacto, de pessoa a pessoa, como uma chama se acende noutra chama. Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma semente tão fecunda que se torna uma grande árvore, capaz de encher o mundo de frutos. 38. A transmissão da fé, que brilha para as pessoas de todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em geração. Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina o nosso caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de Jesus. Como é possível isto? Como se pode estar seguro de beber no « verdadeiro Jesus » através dos séculos? Se o homem fosse um indivíduo isolado, se quiséssemos partir apenas do « eu » individual, que pretende encontrar em si mesmo a firmeza do seu conhecimento, tal certeza seria impossível; não posso, por mim mesmo, ver aquilo que aconteceu numa época tão distante de mim. Mas, esta não é a única maneira de o homem conhecer; a pessoa vive sempre em relação: provém de outros, pertence a outros, a sua vida torna-se maior no encontro com os outros; o próprio conhecimento e consciência de nós mesmos são de tipo relacional e estão ligados a outros que nos precederam, a começar pelos nossos pais que nos deram a vida e o nome. A própria linguagem, as palavras com que interpretamos a nossa vida e a realidade inteira chegam-nos através dos outros, conservadas na memória viva de outros; o conhecimento de nós mesmos só é possível quando participamos duma memória mais ampla. O mesmo acontece com a fé, que leva à plenitude o modo humano de entender: o passado da fé, aquele acto de amor de Jesus que gerou no mundo uma vida nova, chega até nós na memória de outros, das testemunhas, guardado vivo naquele sujeito único de memória que é a Igreja; esta é uma Mãe que nos ensina a falar a linguagem da fé. São João insistiu sobre este aspecto no seu Evangelho, unindo conjuntamente fé e memória e associando as duas à acção do Espírito Santo que, como diz Jesus, « há-de recordar-vos tudo » (Jo 14, 26). O Amor, que é o Espírito e que habita na Igreja, mantém unidos entre si todos os tempos e faz-nos contemporâneos de Jesus, tornando-Se assim o guia do nosso caminho na fé.
39. É impossível crer
sozinhos. A fé não é só uma
opção individual que se
realiza na interioridade do
crente, não é uma relação
isolada entre o « eu » do
fiel e o « Tu » divino,
entre o sujeito autónomo e
Deus; mas, por sua natureza,
abre-se ao « nós »,
verifica-se sempre dentro da
comunhão da Igreja. Assim
no-lo recorda a forma
dialogada do Credo, que se
usa na liturgia baptismal. O
crer exprime-se como
resposta a um convite, a uma
palavra que não provém de
mim, mas deve ser escutada;
por isso, insere-se no
interior de um diálogo, não pode ser
uma mera confissão
que nasce do indivíduo: só é
possível responder « creio »
em primeira pessoa, porque
se pertence a uma comunhão
grande, dizendo também «
cremos ». Esta abertura ao «
nós » eclesial realiza-se de
acordo com a abertura
própria do amor de Deus, que
não é apenas relação entre o
Pai e o Filho, entre « eu »
e « tu », mas, no Espírito,
é também um « nós », uma
comunhão de pessoas. Por
isso mesmo, quem crê nunca
está sozinho; e, pela mesma
razão, a fé tende a
difundir-se, a convidar
outros para a sua alegria.
Quem recebe a fé, descobre
que os espaços do próprio «
eu » se alargam, gerando-se
nele novas relações que
enriquecem a vida. Assim o
exprimiu vigorosamente
Tertuliano ao dizer do
catecúmeno que, tendo sido
recebido numa nova família «
depois do banho do novo
nascimento », é acolhido na
casa da Mãe para erguer as
mãos e rezar, juntamente com
os irmãos, o Pai Nosso.[34]
Os
sacramentos e a transmissão
da fé
40. Como sucede em cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da sua memória. Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas antes que tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da Tradição Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo, que temos contacto vivo com a memória fundadora. E aquilo que foi transmitido pelos Apóstolos, como afirma o Concílio Ecuménico Vaticano II, « abrange tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé; e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita ».[35] De facto, a fé tem necessidade de um âmbito onde se possa testemunhar e comunicar, e que o mesmo seja adequado e proporcionado ao que se comunica. Para transmitir um conteúdo meramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse um livro ou a repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros. Para se transmitir tal plenitude, existe um meio especial que põe em jogo a pessoa inteira: corpo e espírito, interioridade e relações. Este meio são os sacramentos celebrados na liturgia da Igreja: neles, comunica-se uma memória encarnada, ligada aos lugares e épocas da vida, associada com todos os sentidos; neles, a pessoa é envolvida, como membro de um sujeito vivo, num tecido de relações comunitárias. Por isso, se é verdade que os sacramentos são os sacramentos da fé,[36] há que afirmar também que a fé tem uma estrutura sacramental; o despertar da fé passa pelo despertar de um novo sentido sacramental na vida do homem e na existência cristã, mostrando como o visível e o material se abrem para o mistério do eterno.
40. Como sucede em cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da sua memória. Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas antes que tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da Tradição Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo, que temos contacto vivo com a memória fundadora. E aquilo que foi transmitido pelos Apóstolos, como afirma o Concílio Ecuménico Vaticano II, « abrange tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé; e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita ».[35] De facto, a fé tem necessidade de um âmbito onde se possa testemunhar e comunicar, e que o mesmo seja adequado e proporcionado ao que se comunica. Para transmitir um conteúdo meramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse um livro ou a repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros. Para se transmitir tal plenitude, existe um meio especial que põe em jogo a pessoa inteira: corpo e espírito, interioridade e relações. Este meio são os sacramentos celebrados na liturgia da Igreja: neles, comunica-se uma memória encarnada, ligada aos lugares e épocas da vida, associada com todos os sentidos; neles, a pessoa é envolvida, como membro de um sujeito vivo, num tecido de relações comunitárias. Por isso, se é verdade que os sacramentos são os sacramentos da fé,[36] há que afirmar também que a fé tem uma estrutura sacramental; o despertar da fé passa pelo despertar de um novo sentido sacramental na vida do homem e na existência cristã, mostrando como o visível e o material se abrem para o mistério do eterno.
41.
A transmissão da fé
verifica-se, em primeiro
lugar, através do
Baptismo. Poderia
parecer que este
sacramento fosse apenas
um modo para simbolizar
a confissão de fé, um
acto pedagógico para
quem precise de imagens
e gestos, e do qual
seria possível
fundamentalmente
prescindir. Mas não é
assim, como no-lo
recorda uma palavra de
São Paulo: « Pelo
Baptismo fomos
sepultados com Cristo na
morte, para que, tal
como Cristo foi
ressuscitado de entre os
mortos pela glória do
Pai, também nós
caminhemos numa vida
nova » (Rm 6, 4);
nele, tornamo-nos nova
criatura e filhos
adoptivos de Deus. E
mais adiante o Apóstolo
diz que o cristão foi
confiado a uma « forma
de ensino » (typos
didachés), a que
obedece de coração (cf.
Rm 6, 17): no
Baptismo, o homem recebe
também uma doutrina que
deve professar e uma
forma concreta de vida
que requer o
envolvimento de toda a
sua pessoa,
encaminhando-a para o
bem; é transferido para
um novo âmbito, confiado
a um novo ambiente, a
uma nova maneira comum
de agir, na Igreja.
Deste modo, o Baptismo
recorda-nos que a fé não
é obra do indivíduo isolado, não é um
acto que o homem possa
realizar contando apenas com
as próprias forças, mas tem
de ser recebida, entrando na
comunhão eclesial que
transmite o dom de Deus:
ninguém se baptiza a si
mesmo, tal como ninguém vem
sozinho à existência. Fomos
baptizados.
42.
Quais são os
elementos baptismais que
nos introduzem nesta
nova « forma de ensino
»? Sobre o catecúmeno é
invocado, em primeiro
lugar, o nome da
Trindade: Pai, Filho e
Espírito Santo. E deste
modo se oferece, logo
desde o princípio, uma
síntese do caminho da
fé: o Deus que chamou
Abraão e quis chamar-Se
seu Deus, o Deus que
revelou o seu nome a
Moisés, o Deus que, ao
entregar-nos o seu
Filho, nos revelou
plenamente o mistério do
seu Nome, dá à pessoa
baptizada uma nova
identidade filial. Desta
forma, se evidencia o
sentido da imersão na
água que se realiza no
Baptismo: a água é,
simultaneamente, símbolo
de morte, que nos
convida a passar pela
conversão do « eu »
tendo em vista a sua
abertura a um « Eu »
maior, e símbolo de
vida, do ventre onde
renascemos para seguir
Cristo na sua nova
existência. Deste modo,
através da imersão na
água, o Baptismo
fala-nos da estrutura
encarnada da fé. A acção
de Cristo toca-nos na
nossa realidade pessoal,
transformando-nos
radicalmente,
tornando-nos filhos
adoptivos de Deus,
participantes da
natureza divina; e assim
modifica todas as nossas
relações, a nossa
situação concreta na
terra e no universo,
abrindo-as à própria
vida de comunhão d’Ele. Este
dinamismo de transformação
próprio do Baptismo
ajuda-nos a perceber a
importância do catecumenato,
que hoje — mesmo em
sociedades de antigas raízes
cristãs, onde um número
crescente de adultos se
aproxima do sacramento
baptismal — se reveste de
singular relevância para a
nova evangelização. É o
itinerário de preparação
para o Baptismo, para a
transformação da vida
inteira em Cristo.
Para
compreender a ligação entre
o Baptismo e a fé, pode
ajudar-nos a recordação de
um texto do profeta Isaías,
que já aparece associado com
o Baptismo na literatura
cristã antiga: « Terá o seu
refúgio em rochas elevadas,
terá (…) água em abundância
» (Is 33, 16).[37]
Resgatado da morte pela
água, o baptizado pode
manter-se de pé sobre «
rochas elevadas », porque
encontrou a solidez à qual
confiar-se; e, assim, a água
de morte transformou-se em
água de vida. O texto grego
descrevia-a como água
pistòs, água « fiel »: a
água do Baptismo é fiel,
podendo confiar-nos a ela
porque a sua corrente entra
na dinâmica de amor de
Jesus, fonte de segurança
para o nosso caminho na
vida.
43.
A estrutura do
Baptismo, a sua
configuração como
renascimento no qual
recebemos um nome novo e
uma vida nova, ajuda-nos
a compreender o sentido
e a importância do
Baptismo das crianças.
Uma criança não é capaz
de um acto
livre que acolha a fé:
ainda não a pode confessar
sozinha e, por isso mesmo, é
confessada pelos seus pais e
pelos padrinhos em nome
dela. A fé é vivida no
âmbito da comunidade da
Igreja, insere-se num « nós
» comum. Assim, a criança
pode ser sustentada por
outros, pelos seus pais e
padrinhos, e pode ser
acolhida na fé deles que é a
fé da Igreja, simbolizada
pela luz que o pai toma do
círio na liturgia baptismal.
Esta estrutura do Baptismo
põe em evidência a
importância da sinergia
entre a Igreja e a família
na transmissão da fé. Os
pais são chamados — como diz
Santo Agostinho — não só a
gerar os filhos para a vida,
mas a levá-los a Deus, para
que sejam, através do
Baptismo, regenerados como
filhos de Deus, recebam o
dom da fé.[38] Assim,
juntamente com a vida,
é-lhes dada a orientação
fundamental da existência e
a segurança de um bom
futuro; orientação esta, que
será ulteriormente
corroborada no sacramento da
Confirmação com o selo
indelével do Espírito Santo.
44.
A natureza
sacramental da fé
encontra a sua máxima
expressão na Eucaristia.
Esta é alimento precioso
da fé, encontro com
Cristo presente de
maneira real no seu acto
supremo de amor: o dom
de Si mesmo que gera
vida. Na Eucaristia,
temos o cruzamento dos
dois eixos sobre os
quais a fé percorre o
seu caminho. Por um
lado,
o eixo da história: a
Eucaristia é acto de
memória, actualização do
mistério, em que o passado,
como um evento de morte e
ressurreição, mostra a sua
capacidade de se abrir ao
futuro, de antecipar a
plenitude final; no-lo
recorda a liturgia com o seu
hodie, o « hoje » dos
mistérios da salvação. Por
outro lado, encontra-se aqui
também o eixo que conduz do
mundo visível ao invisível:
na Eucaristia, aprendemos a
ver a profundidade do real.
O pão e o vinho
transformam-se no Corpo e
Sangue de Cristo, que Se faz
presente no seu caminho
pascal para o Pai: este
movimento introduz-nos,
corpo e alma, no movimento
de toda a criação para a sua
plenitude em Deus.
45.
Na celebração dos
sacramentos, a Igreja
transmite a sua memória,
particularmente com a
profissão de fé. Nesta,
não se trata tanto de
prestar assentimento a
um conjunto de verdades
abstractas, como
sobretudo fazer a vida
toda entrar na comunhão
plena com o Deus Vivo.
Podemos dizer que, no
Credo, o fiel é
convidado a entrar no
mistério que professa e
a deixar-se transformar
por aquilo que confessa.
Para compreender o
sentido desta afirmação,
pensemos em primeiro
lugar no conteúdo do
Credo. Este tem uma
estrutura trinitária: o
Pai e o Filho unem-Se no
Espírito de amor. Deste
modo o crente afirma que
o centro do ser, o
segredo mais profundo de
todas as coisas é a
comunhão divina. Além
disso, o Credo
contém uma confissão
cristológica: repassam-se os mistérios da vida
de Jesus até à sua
morte, ressurreição e ascensão
ao Céu, na esperança da sua
vinda final na glória. E,
consequentemente, afirma-se
que este Deus-comunhão,
permuta de amor entre o Pai
e o Filho no Espírito, é
capaz de abraçar a história
do homem, de introduzi-lo no
seu dinamismo de comunhão,
que tem, no Pai, a sua
origem e meta final. Aquele
que confessa a fé sente-se
implicado na verdade que
confessa; não pode
pronunciar, com verdade, as
palavras do Credo,
sem ser por isso mesmo
transformado, sem mergulhar
na história de amor que o
abraça, que dilata o seu ser
tornando-o parte de uma
grande comunhão, do sujeito
último que pronuncia o
Credo: a Igreja. Todas
as verdades, em que cremos,
afirmam o mistério da vida
nova da fé como caminho de
comunhão com o Deus Vivo.
Fé, oração e Decálogo
46. Há mais dois elementos que são essenciais na transmissão fiel da memória da Igreja. O primeiro é a Oração do Senhor, o Pai Nosso; nela, o cristão aprende a partilhar a própria experiência espiritual de Cristo e começa a ver com os olhos d’Ele. A partir d’Aquele que é Luz da Luz, do Filho Unigénito do Pai, também nós conhecemos a Deus e podemos inflamar outros no desejo de se aproximarem d’Ele. Igualmente importante é ainda a ligação entre a fé e o Decálogo. Dissemos já que a fé se apresenta como um caminho, uma estrada a percorrer, aberta pelo encontro com o Deus vivo; por isso, à luz da fé, da entrega total ao Deus que salva, o Decálogo adquire a sua verdade mais profunda, contida nas palavras que introduzem os Dez Mandamentos: « Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto » (Ex 20, 2). O Decálogo não é um conjunto de preceitos negativos, mas de indicações concretas para sair do deserto do « eu » auto-referencial, fechado em si mesmo, e entrar em diálogo com Deus, deixando-se abraçar pela sua misericórdia a fim de a irradiar. Deste modo, a fé confessa o amor de Deus, origem e sustentáculo de tudo, deixa-se mover por este amor para caminhar rumo à plenitude da comunhão com Deus. O Decálogo aparece como o caminho da gratidão, da resposta de amor, que é possível porque, na fé, nos abrimos à experiência do amor de Deus que nos transforma. E este caminho recebe uma luz nova de tudo aquilo que Jesus ensina no Sermão da Montanha (cf. Mt 5 - 7).
Fé, oração e Decálogo
46. Há mais dois elementos que são essenciais na transmissão fiel da memória da Igreja. O primeiro é a Oração do Senhor, o Pai Nosso; nela, o cristão aprende a partilhar a própria experiência espiritual de Cristo e começa a ver com os olhos d’Ele. A partir d’Aquele que é Luz da Luz, do Filho Unigénito do Pai, também nós conhecemos a Deus e podemos inflamar outros no desejo de se aproximarem d’Ele. Igualmente importante é ainda a ligação entre a fé e o Decálogo. Dissemos já que a fé se apresenta como um caminho, uma estrada a percorrer, aberta pelo encontro com o Deus vivo; por isso, à luz da fé, da entrega total ao Deus que salva, o Decálogo adquire a sua verdade mais profunda, contida nas palavras que introduzem os Dez Mandamentos: « Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto » (Ex 20, 2). O Decálogo não é um conjunto de preceitos negativos, mas de indicações concretas para sair do deserto do « eu » auto-referencial, fechado em si mesmo, e entrar em diálogo com Deus, deixando-se abraçar pela sua misericórdia a fim de a irradiar. Deste modo, a fé confessa o amor de Deus, origem e sustentáculo de tudo, deixa-se mover por este amor para caminhar rumo à plenitude da comunhão com Deus. O Decálogo aparece como o caminho da gratidão, da resposta de amor, que é possível porque, na fé, nos abrimos à experiência do amor de Deus que nos transforma. E este caminho recebe uma luz nova de tudo aquilo que Jesus ensina no Sermão da Montanha (cf. Mt 5 - 7).
Toquei
assim os quatro elementos
que resumem o tesouro de
memória que a Igreja
transmite: a confissão de
fé, a celebração dos
sacramentos, o caminho do
Decálogo, a oração. À volta
deles se estruturou
tradicionalmente a catequese
da Igreja, como se pode ver
no
Catecismo da Igreja
Católica, instrumento
fundamental para aquele acto
com que a Igreja comunica o
conteúdo inteiro da fé, «
tudo aquilo que ela é e tudo
quanto acredita ».[39]
A unidade
e a integridade da fé
47.
A unidade da Igreja,
no tempo e no espaço,
está ligada com a
unidade da fé: « Há um
só Corpo e um só
Espírito, (...) uma só
fé » (Ef 4, 4-5).
Hoje poderá parecer
realizável a união dos
homens com base num
compromisso comum, na
amizade, na partilha da
mesma sorte com uma meta
comum; mas sentimos
muita dificuldade em
conceber uma unidade na
mesma verdade;
parece-nos que uma união
do género se oporia à
liberdade do pensamento
e à autonomia do
sujeito. Pelo contrário,
a experiência do amor
diz-nos que é possível
termos uma visão comum
precisamente no amor:
neste, aprendemos a ver
a realidade com os olhos
do outro e isto, longe
de nos empobrecer,
enriquece o nosso olhar.
O amor verdadeiro, à
medida do amor divino,
exige a verdade e, no
olhar comum da verdade
que é Jesus Cristo,
torna-se firme e
profundo. Esta é também
a alegria da fé: a
unidade de visão num só
corpo e num só espírito.
Neste sentido, São Leão
Magno podia afirmar: «
Se a fé não é una, não é
fé ».[40]
Qual é o
segredo desta unidade? A fé
é una, em primeiro lugar,
pela unidade de Deus
conhecido e confessado.
Todos os artigos de fé se
referem a Ele, são caminhos
para conhecer o seu ser e o
seu agir; por isso, possuem
uma unidade superior a tudo
quanto possamos construir
com o nosso pensamento,
possuem a unidade que nos
enriquece, porque se
comunica a nós e nos torna
um.
Depois, a
fé é una, porque se dirige
ao único Senhor, à vida de
Jesus, à história concreta
que Ele partilha connosco.
Santo Ireneu de Lião deixou
isto claro, contrapondo-o
aos hereges gnósticos. Estes
sustentavam a existência de
dois tipos de fé: uma fé
rude, a fé dos simples,
imperfeita, que se mantinha
ao nível da carne de Cristo
e da contemplação dos seus
mistérios; e outro tipo de
fé mais profunda e perfeita,
a fé verdadeira reservada
para um círculo restrito de
iniciados, que se elevava
com o intelecto para além da
carne de Jesus rumo aos
mistérios da divindade
desconhecida. Contra esta
pretensão, que ainda em
nossos dias continua a ter o
seu encanto e os seus
seguidores, Santo Ireneu
reafirma que a fé é uma
só, porque passa
sempre pelo ponto concreto
da encarnação, sem nunca
superar a carne e a história
de Cristo, dado que Deus Se
quis revelar plenamente
nela. É por isso que não há
diferença, na fé, entre «
aquele que é capaz de falar
dela mais tempo » e « aquele
que fala pouco », entre
aquele que é mais dotado e
quem se mostra menos capaz:
nem o primeiro pode ampliar
a fé, nem o segundo
diminuí-la.[41]
Por
último, a fé é una, porque é
partilhada por toda a
Igreja, que é um só corpo e
um só Espírito: na comunhão
do único sujeito que é a
Igreja, recebemos um olhar
comum. Confessando a mesma
fé, apoiamo-nos sobre a
mesma rocha, somos
transformados pelo mesmo
Espírito de amor, irradiamos uma
única luz e temos um único
olhar para penetrar na
realidade.
48.
Dado que a fé é uma
só, deve-se confessar em
toda a sua pureza e
integridade.
Precisamente porque
todos os artigos da fé
estão unitariamente
ligados, negar um deles
— mesmo dos que possam
parecer menos
importantes — equivale a
danificar o todo. Cada
época pode encontrar
pontos da fé mais fáceis
ou mais difíceis de
aceitar; por isso, é
importante vigiar para
que se transmita todo o
depósito da fé (cf. 1
Tm 6, 20) e para que
se insista oportunamente
sobre todos os aspectos
da confissão de fé. De
facto, visto que a
unidade da fé é a
unidade da Igreja, tirar
algo à fé é fazê-lo à
verdade da comunhão. Os
Padres descreveram a fé
como um corpo, o corpo
da verdade, com diversos
membros, analogamente ao
que se passa no corpo de
Cristo com o seu
prolongamento na
Igreja.[42] A integridade
da fé foi associada
também com a imagem da
Igreja virgem, com o seu
amor esponsal fiel a
Cristo: danificar a fé
significa danificar a
comunhão com o Senhor.[43]
A unidade da fé é, por
conseguinte, a de um
organismo vivo, como bem
evidenciou o Beato John
Henry Newman, quando
enumera, entre as notas
características para
distinguir a
continuidade da doutrina
no tempo, o seu poder de
assimilar em si tudo o
que encontra, nos diversos âmbitos em que
se torna presente, nas
diversas culturas que
encontra,[44] tudo
purificando e levando à sua
melhor expressão. É assim
que a fé se mostra
universal, católica, porque
a sua luz cresce para
iluminar todo o universo,
toda a história.
49.
Como serviço à
unidade da fé e à sua
transmissão íntegra, o
Senhor deu à Igreja o
dom da sucessão
apostólica. Por seu
intermédio, fica
garantida a continuidade
da memória da Igreja, e
é possível beber, com
certeza, na fonte pura
donde surge a fé; assim
a garantia da ligação
com a origem é-nos dada
por pessoas vivas, o que
equivale à fé viva que a
Igreja transmite. Esta
fé viva assenta sobre a
fidelidade das
testemunhas que foram
escolhidas pelo Senhor
para tal tarefa; por
isso, o magistério fala
sempre em obediência à
Palavra originária,
sobre a qual se baseia a
fé, e é fiável porque se
entrega à Palavra que
escuta, guarda e
expõe.[45] No discurso de
despedida aos anciãos de
Éfeso, em Mileto,
referido por São Lucas
nos Actos dos Apóstolos,
São Paulo atesta que
cumpriu o encargo, que
lhe foi confiado pelo
Senhor, de lhes anunciar
toda a vontade de Deus
(cf. Act 20, 27);
é graças ao magistério
da Igreja que nos pode
chegar, íntegra, esta
vontade e, com ela, a
alegria de a podermos
cumprir plenamente.
CAPÍTULO IV
DEUS
PREPARA
PARA ELES UMA CIDADE
(cf. Heb 11, 16)
PARA ELES UMA CIDADE
(cf. Heb 11, 16)
A fé e o
bem comum
50. Ao apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que, na arca, consegue salvar a sua família (cf. Heb 11, 7). Depois aparece Abraão, de quem se diz que, pela fé, habitara em tendas, esperando a cidade de alicerces firmes (cf. Heb 11, 9-10). Vemos assim surgir, relacionada com a fé, uma nova fiabilidade, uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem de fé assenta sobre o Deus-Amen, o Deus fiel (cf. Is 65, 16), tornando-se assim firme ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se refere também à cidade que Deus está a preparar para o homem. A fé revela quão firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável. 51. Devido precisamente à sua ligação com o amor (cf. Gl 5, 6), a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. A fé nasce do encontro com o amor gerador de Deus que mostra o sentido e a bondade da nossa vida; esta é iluminada na medida em que entra no dinamismo aberto por este amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício para a plenitude do amor. A luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das relações humanas, a sua capacidade de perdurarem, serem fiáveis, enriquecerem a vida comum. A fé não afasta do mundo, nem é alheia ao esforço concreto dos nossos contemporâneos. Sem um amor fiável, nada poderia manter verdadeiramente unidos os homens: a unidade entre eles seria concebível apenas enquanto fundada sobre a utilidade, a conjugação dos interesses, o medo, mas não sobre a beleza de viverem juntos, nem sobre a alegria que a simples presença do outro pode gerar. A fé faz compreender a arquitectura das relações humanas, porque identifica o seu fundamento último e destino definitivo em Deus, no seu amor, e assim ilumina a arte da sua construção, tornando-se um serviço ao bem comum. Por isso, a fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um futuro de esperança. A Carta aos Hebreus oferece um exemplo disto mesmo, ao nomear entre os homens de fé Samuel e David, a quem a fé permitiu « exercerem a justiça » (11, 33). A expressão refere-se aqui à sua justiça no governar, àquela sabedoria que traz a paz ao povo (cf. 1 Sm 12, 3-5; 2 Sm 8, 15). As mãos da fé levantam-se para o céu, mas fazem-no ao mesmo tempo que edificam, na caridade, uma cidade construída sobre relações que têm como alicerce o amor de Deus.
50. Ao apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que, na arca, consegue salvar a sua família (cf. Heb 11, 7). Depois aparece Abraão, de quem se diz que, pela fé, habitara em tendas, esperando a cidade de alicerces firmes (cf. Heb 11, 9-10). Vemos assim surgir, relacionada com a fé, uma nova fiabilidade, uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem de fé assenta sobre o Deus-Amen, o Deus fiel (cf. Is 65, 16), tornando-se assim firme ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se refere também à cidade que Deus está a preparar para o homem. A fé revela quão firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável. 51. Devido precisamente à sua ligação com o amor (cf. Gl 5, 6), a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. A fé nasce do encontro com o amor gerador de Deus que mostra o sentido e a bondade da nossa vida; esta é iluminada na medida em que entra no dinamismo aberto por este amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício para a plenitude do amor. A luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das relações humanas, a sua capacidade de perdurarem, serem fiáveis, enriquecerem a vida comum. A fé não afasta do mundo, nem é alheia ao esforço concreto dos nossos contemporâneos. Sem um amor fiável, nada poderia manter verdadeiramente unidos os homens: a unidade entre eles seria concebível apenas enquanto fundada sobre a utilidade, a conjugação dos interesses, o medo, mas não sobre a beleza de viverem juntos, nem sobre a alegria que a simples presença do outro pode gerar. A fé faz compreender a arquitectura das relações humanas, porque identifica o seu fundamento último e destino definitivo em Deus, no seu amor, e assim ilumina a arte da sua construção, tornando-se um serviço ao bem comum. Por isso, a fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um futuro de esperança. A Carta aos Hebreus oferece um exemplo disto mesmo, ao nomear entre os homens de fé Samuel e David, a quem a fé permitiu « exercerem a justiça » (11, 33). A expressão refere-se aqui à sua justiça no governar, àquela sabedoria que traz a paz ao povo (cf. 1 Sm 12, 3-5; 2 Sm 8, 15). As mãos da fé levantam-se para o céu, mas fazem-no ao mesmo tempo que edificam, na caridade, uma cidade construída sobre relações que têm como alicerce o amor de Deus.
.
A fé e a família
52. No caminho de Abraão para a cidade futura, a Carta aos Hebreus alude à bênção que se transmite dos pais aos filhos (cf. 11, 20-21). O primeiro âmbito da cidade dos homens iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na união estável do homem e da mulher no matrimónio. Tal união nasce do seu amor, sinal e presença do amor de Deus, nasce do reconhecimento e aceitação do bem que é a diferença sexual, em virtude da qual os cônjuges se podem unir numa só carne (cf. Gn 2, 24) e são capazes de gerar uma nova vida, manifestação da bondade do Criador, da sua sabedoria e do seu desígnio de amor. Fundados sobre este amor, homem e mulher podem prometer-se amor mútuo com um gesto que compromete a vida inteira e que lembra muitos traços da fé: prometer um amor que dure para sempre é possível quando se descobre um desígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada. Depois, a fé pode ajudar a individuar em toda a sua profundidade e riqueza a geração dos filhos, porque faz reconhecer nela o amor criador que nos dá e nos entrega o mistério de uma nova pessoa; foi assim que Sara, pela sua fé, se tornou mãe, apoiando-se na fidelidade de Deus à sua promessa (cf. Heb 11, 11). 53. Em família, a fé acompanha todas as idades da vida, a começar pela infância: as crianças aprendem a confiar no amor de seus pais. Por isso, é importante que os pais cultivem práticas de fé comuns na família, que acompanhem o amadurecimento da fé dos filhos. Sobretudo os jovens, que atravessam uma idade da vida tão complexa, rica e importante para a fé, devem sentir a proximidade e a atenção da família e da comunidade eclesial no seu caminho de crescimento da fé. Todos vimos como, nas Jornadas Mundiais da Juventude, os jovens mostram a alegria da fé, o compromisso de viver uma fé cada vez mais sólida e generosa. Os jovens têm o desejo de uma vida grande; o encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma grande chamada — a vocação ao amor — e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade.
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A fé e a família
52. No caminho de Abraão para a cidade futura, a Carta aos Hebreus alude à bênção que se transmite dos pais aos filhos (cf. 11, 20-21). O primeiro âmbito da cidade dos homens iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na união estável do homem e da mulher no matrimónio. Tal união nasce do seu amor, sinal e presença do amor de Deus, nasce do reconhecimento e aceitação do bem que é a diferença sexual, em virtude da qual os cônjuges se podem unir numa só carne (cf. Gn 2, 24) e são capazes de gerar uma nova vida, manifestação da bondade do Criador, da sua sabedoria e do seu desígnio de amor. Fundados sobre este amor, homem e mulher podem prometer-se amor mútuo com um gesto que compromete a vida inteira e que lembra muitos traços da fé: prometer um amor que dure para sempre é possível quando se descobre um desígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada. Depois, a fé pode ajudar a individuar em toda a sua profundidade e riqueza a geração dos filhos, porque faz reconhecer nela o amor criador que nos dá e nos entrega o mistério de uma nova pessoa; foi assim que Sara, pela sua fé, se tornou mãe, apoiando-se na fidelidade de Deus à sua promessa (cf. Heb 11, 11). 53. Em família, a fé acompanha todas as idades da vida, a começar pela infância: as crianças aprendem a confiar no amor de seus pais. Por isso, é importante que os pais cultivem práticas de fé comuns na família, que acompanhem o amadurecimento da fé dos filhos. Sobretudo os jovens, que atravessam uma idade da vida tão complexa, rica e importante para a fé, devem sentir a proximidade e a atenção da família e da comunidade eclesial no seu caminho de crescimento da fé. Todos vimos como, nas Jornadas Mundiais da Juventude, os jovens mostram a alegria da fé, o compromisso de viver uma fé cada vez mais sólida e generosa. Os jovens têm o desejo de uma vida grande; o encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma grande chamada — a vocação ao amor — e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade.
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Uma luz
para a vida em sociedade
54. Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade. Desde o seu início, a história de fé foi uma história de fraternidade, embora não desprovida de conflitos. Deus chama Abraão para sair da sua terra, prometendo fazer dele uma única e grande nação, um grande povo, sobre o qual repousa a Bênção divina (cf. Gn 12, 1-3). À medida que a história da salvação avança, o homem descobre que Deus quer fazer a todos participar como irmãos da única bênção, que encontra a sua plenitude em Jesus, para que todos se tornem um só. O amor inexaurível do Pai é-nos comunicado em Jesus, também através da presença do irmão. A fé ensina-nos a ver que, em cada homem, há uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão. Quantos benefícios trouxe o olhar da fé cristã à cidade dos homens para a sua vida em comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, que não era tão evidente no mundo antigo. No século II, o pagão Celso censurava os cristãos por algo que lhe parecia uma ilusão e um engano: pensar que Deus tivesse criado o mundo para o homem, colocando-o no vértice do universo inteiro. « Porquê pretender que [a verdura] cresça para os homens, em vez de crescer para os mais selvagens dos animais sem razão? »[46] « Se olhássemos a terra do alto do céu, que diferença se nos ofereceria entre as nossas actividades e as das formigas e das abelhas? »[47] No centro da fé bíblica, há o amor de Deus, o seu cuidado concreto por cada pessoa, o seu desejo de salvação que abraça toda a humanidade e a criação inteira e que atinge o clímax na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Quando se obscurece esta realidade, falta o critério para individuar o que torna preciosa e única a vida do homem; e este perde o seu lugar no universo, extravia-se na natureza, renunciando à própria responsabilidade moral, ou então pretende ser árbitro absoluto, arrogando-se um poder de manipulação sem limites.
54. Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade. Desde o seu início, a história de fé foi uma história de fraternidade, embora não desprovida de conflitos. Deus chama Abraão para sair da sua terra, prometendo fazer dele uma única e grande nação, um grande povo, sobre o qual repousa a Bênção divina (cf. Gn 12, 1-3). À medida que a história da salvação avança, o homem descobre que Deus quer fazer a todos participar como irmãos da única bênção, que encontra a sua plenitude em Jesus, para que todos se tornem um só. O amor inexaurível do Pai é-nos comunicado em Jesus, também através da presença do irmão. A fé ensina-nos a ver que, em cada homem, há uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão. Quantos benefícios trouxe o olhar da fé cristã à cidade dos homens para a sua vida em comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, que não era tão evidente no mundo antigo. No século II, o pagão Celso censurava os cristãos por algo que lhe parecia uma ilusão e um engano: pensar que Deus tivesse criado o mundo para o homem, colocando-o no vértice do universo inteiro. « Porquê pretender que [a verdura] cresça para os homens, em vez de crescer para os mais selvagens dos animais sem razão? »[46] « Se olhássemos a terra do alto do céu, que diferença se nos ofereceria entre as nossas actividades e as das formigas e das abelhas? »[47] No centro da fé bíblica, há o amor de Deus, o seu cuidado concreto por cada pessoa, o seu desejo de salvação que abraça toda a humanidade e a criação inteira e que atinge o clímax na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Quando se obscurece esta realidade, falta o critério para individuar o que torna preciosa e única a vida do homem; e este perde o seu lugar no universo, extravia-se na natureza, renunciando à própria responsabilidade moral, ou então pretende ser árbitro absoluto, arrogando-se um poder de manipulação sem limites.
55.
Além disso a fé, ao
revelar-nos o amor de
Deus Criador, faz-nos
olhar com maior respeito
para a natureza,
fazendo-nos reconhecer
nela uma gramática
escrita por Ele e uma
habitação que nos foi
confiada para ser
cultivada e guardada;
ajuda-nos a encontrar
modelos de progresso,
que não se baseiem
apenas na utilidade e no
lucro mas considerem a
criação como dom, de que
todos somos devedores;
ensina-nos a individuar
formas justas de governo,
reconhecendo que a
autoridade vem de Deus para
estar ao serviço do bem
comum. A fé afirma também a
possibilidade do perdão, que
muitas vezes requer tempo,
canseira, paciência e
empenho; um perdão possível
quando se descobre que o bem
é sempre mais originário e
mais forte que o mal, que a
palavra com que Deus afirma
a nossa vida é mais profunda
do que todas as nossas
negações. Aliás, mesmo dum
ponto de vista simplesmente
antropológico, a unidade é
superior ao conflito;
devemos preocupar-nos também
com o conflito, mas
vivendo-o de tal modo que
nos leve a resolvê-lo, a
superá-lo, como elo duma
cadeia, num avanço para a
unidade.
Quando a
fé esmorece, há o risco de
esmorecerem também os
fundamentos do viver, como
advertia o poeta Thomas
Sterls Eliot: « Precisais
porventura que se vos diga
que até aqueles modestos
sucessos / que vos permitem
ser orgulhosos de uma
sociedade educada /
dificilmente sobreviveriam à
fé, a que devem o seu
significado? »[48] Se
tiramos a fé em Deus das
nossas cidades,
enfraquecer-se-á a confiança
entre nós, apenas o medo nos
manterá unidos, e a
estabilidade ficará
ameaçada. Afirma a Carta aos
Hebreus: « Deus não Se
envergonha de ser chamado o "seu Deus", porque
preparou para eles uma
cidade » (Heb 11,
16). A expressão « não se
envergonha » tem conotado um
reconhecimento público:
pretende-se afirmar que
Deus, com o seu agir
concreto, confessa
publicamente a sua presença
entre nós, o seu desejo de
tornar firmes as relações
entre os homens. Porventura
vamos ser nós a
envergonhar-nos de chamar a
Deus « o nosso Deus »?
Seremos por acaso nós a
recusar-nos a confessá-Lo
como tal na nossa vida
pública, a propor a grandeza
da vida comum que Ele torna
possível? A fé ilumina a
vida social: possui uma luz
criadora para cada momento
novo da história, porque
coloca todos os
acontecimentos em relação
com a origem e o destino de
tudo no Pai que nos ama.
.
.
Uma força
consoladora no sofrimento
56. São Paulo, falando aos cristãos de Corinto das suas tribulações e sofrimentos, coloca a sua fé em relação com a pregação do Evangelho. De facto, diz que nele se cumpre esta passagem da Escritura: « Acreditei e por isso falei » (2 Cor 4, 13). O Apóstolo refere-se a uma frase do Salmo 116, onde o salmista exclama: « Eu tinha confiança, mesmo quando disse: "A minha aflição é muito grande!" » (v. 10). Falar da fé comporta frequentemente falar também de provas dolorosas, mas é precisamente nelas que São Paulo vê o anúncio mais convincente do Evangelho, porque é na fraqueza e no sofrimento que sobressai e se descobre o poder de Deus que supera a nossa fraqueza e o nosso sofrimento. O próprio Apóstolo se encontra numa situação de morte que redunda em vida para os cristãos (cf. 2 Cor 4, 7-12). Na hora da prova, a fé ilumina-nos; e é precisamente no sofrimento e na fraqueza que se torna claro como « não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor » (2 Cor 4, 5). O capítulo 11 da Carta aos Hebreus termina com a referência a quantos sofreram pela fé, entre os quais ocupa um lugar particular Moisés que tomou sobre si a humilhação de Cristo (cf. vv. 26.35-38). O cristão sabe que o sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se acto de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser uma etapa de crescimento na fé e no amor. Contemplando a união de Cristo com o Pai, mesmo no momento de maior sofrimento na cruz (cf. Mc 15, 34), o cristão aprende a participar no olhar próprio de Jesus; até a morte fica iluminada, podendo ser vivida como a última chamada da fé, o último « Sai da tua terra » (cf. Gn 12, 1), o último « Vem! » pronunciado pelo Pai, a quem nos entregamos com a confiança de que Ele nos tornará firmes também na passagem definitiva. 57. A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. Em Cristo, o próprio Deus quis partilhar connosco esta estrada e oferecer-nos o seu olhar para nela vermos a luz. Cristo é aquele que, tendo suportado a dor, Se tornou « autor e consumador da fé » (Heb 12, 2).
56. São Paulo, falando aos cristãos de Corinto das suas tribulações e sofrimentos, coloca a sua fé em relação com a pregação do Evangelho. De facto, diz que nele se cumpre esta passagem da Escritura: « Acreditei e por isso falei » (2 Cor 4, 13). O Apóstolo refere-se a uma frase do Salmo 116, onde o salmista exclama: « Eu tinha confiança, mesmo quando disse: "A minha aflição é muito grande!" » (v. 10). Falar da fé comporta frequentemente falar também de provas dolorosas, mas é precisamente nelas que São Paulo vê o anúncio mais convincente do Evangelho, porque é na fraqueza e no sofrimento que sobressai e se descobre o poder de Deus que supera a nossa fraqueza e o nosso sofrimento. O próprio Apóstolo se encontra numa situação de morte que redunda em vida para os cristãos (cf. 2 Cor 4, 7-12). Na hora da prova, a fé ilumina-nos; e é precisamente no sofrimento e na fraqueza que se torna claro como « não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor » (2 Cor 4, 5). O capítulo 11 da Carta aos Hebreus termina com a referência a quantos sofreram pela fé, entre os quais ocupa um lugar particular Moisés que tomou sobre si a humilhação de Cristo (cf. vv. 26.35-38). O cristão sabe que o sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se acto de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser uma etapa de crescimento na fé e no amor. Contemplando a união de Cristo com o Pai, mesmo no momento de maior sofrimento na cruz (cf. Mc 15, 34), o cristão aprende a participar no olhar próprio de Jesus; até a morte fica iluminada, podendo ser vivida como a última chamada da fé, o último « Sai da tua terra » (cf. Gn 12, 1), o último « Vem! » pronunciado pelo Pai, a quem nos entregamos com a confiança de que Ele nos tornará firmes também na passagem definitiva. 57. A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. Em Cristo, o próprio Deus quis partilhar connosco esta estrada e oferecer-nos o seu olhar para nela vermos a luz. Cristo é aquele que, tendo suportado a dor, Se tornou « autor e consumador da fé » (Heb 12, 2).
O
sofrimento recorda-nos que o
serviço da fé ao bem comum é
sempre serviço de esperança
que nos faz olhar em frente,
sabendo que só a partir de
Deus, do futuro que vem de
Jesus ressuscitado, é que a
nossa sociedade pode
encontrar alicerces sólidos
e duradouros. Neste sentido,
a fé está unida à esperança,
porque, embora a nossa
morada aqui na terra se vá
destruindo, há uma habitação
eterna que Deus já inaugurou
em Cristo, no seu corpo (cf.
2 Cor 4, 16 — 5, 5).
Assim, o dinamismo de fé,
esperança e caridade (cf.
1 Ts 1, 3; 1 Cor
13, 13) faz-nos abraçar as
preocupações de todos os
homens, no nosso caminho
rumo àquela cidade, « cujo
arquitecto e construtor é o
próprio Deus » (Heb
11, 10), porque « a
esperança não engana » (Rm
5, 5).
Unida à fé e à caridade,
a esperança projecta-nos
para um futuro certo, que se
coloca numa perspectiva
diferente relativamente às
propostas ilusórias dos
ídolos do mundo, mas que dá
novo impulso e nova força à
vida de todos os dias. Não
deixemos que nos roubem a
esperança, nem permitamos
que esta seja anulada por
soluções e propostas
imediatas que nos bloqueiam
no caminho, que « fragmentam
» o tempo transformando-o em
espaço. O tempo é sempre
superior ao espaço: o espaço
cristaliza os processos, ao
passo que o tempo projecta
para o futuro e impele a
caminhar na esperança.
FELIZ
DAQUELA QUE ACREDITOU
(cf. Lc 1, 45)
(cf. Lc 1, 45)
58. Na parábola do semeador, São Lucas refere estas palavras com que o Senhor explica o significado da « terra boa »: « São aqueles que, tendo ouvido a palavra com um coração bom e virtuoso, conservam-na e dão fruto com a sua perseverança » (Lc 8, 15). No contexto do Evangelho de Lucas, a menção do coração bom e virtuoso, em referência à Palavra ouvida e conservada, pode constituir um retrato implícito da fé da Virgem Maria; o próprio evangelista nos fala da memória de Maria, dizendo que conservava no coração tudo aquilo que ouvia e via, de modo que a Palavra produzisse fruto na sua vida. A Mãe do Senhor é ícone perfeito da fé, como dirá Santa Isabel: « Feliz de ti que acreditaste » (Lc 1, 45).
Em Maria,
Filha de Sião, tem
cumprimento a longa história
de fé do Antigo Testamento,
com a narração de tantas
mulheres fiéis a começar por
Sara; mulheres que eram,
juntamente com os
Patriarcas, o lugar onde a
promessa de Deus se cumpria
e a vida nova desabrochava.
Na plenitude dos tempos, a
Palavra de Deus dirigiu-se a
Maria, e Ela acolheu-a com
todo o seu ser, no seu
coração, para que n’Ela
tomasse carne e nascesse
como luz para os homens. O
mártir São Justino, na obra
Diálogo com Trifão,
tem uma expressão
significativa ao dizer que
Maria, quando aceitou a
mensagem do Anjo, concebeu « fé e
alegria ».[49] De
facto, na Mãe de Jesus, a fé
mostrou-se cheia de fruto e,
quando a nossa vida
espiritual dá fruto,
enchemo-nos de alegria, que
é o sinal mais claro da
grandeza da fé. Na sua vida,
Maria realizou a
peregrinação da fé seguindo
o seu Filho.[50] Assim, em
Maria, o caminho de fé do
Antigo Testamento foi
assumido no seguimento de
Jesus e deixa-se transformar
por Ele, entrando no olhar
próprio do Filho de Deus
encarnado.
59.
Podemos dizer que,
na Bem-aventurada Virgem
Maria, se cumpre aquilo
em que insisti
anteriormente, isto é,
que o crente se envolve
todo na sua confissão de
fé. Pelo seu vínculo com
Jesus, Maria está
intimamente associada
com aquilo que
acreditamos. Na
concepção virginal de
Maria, temos um sinal
claro da filiação divina
de Cristo: a origem
eterna de Cristo está no
Pai — Ele é o Filho em
sentido total e único —
e por isso nasce, no
tempo, sem intervenção
do homem. Sendo Filho,
Jesus pode trazer ao
mundo um novo início e
uma nova luz, a
plenitude do amor fiel
de Deus que Se entrega
aos homens. Por outro
lado, a verdadeira
maternidade de Maria
garantiu, ao Filho de
Deus, uma verdadeira
história humana, uma
verdadeira carne na qual
morrerá na cruz e
ressuscitará dos mortos.
Maria acompanhá-Lo-á até
à cruz (cf. Jo
19, 25), donde a sua
maternidade se estenderá
a todo o discípulo de
seu Filho (cf. Jo
19, 26-27). Estará
presente também no Cenáculo,
depois da ressurreição e
ascensão de Jesus, para
implorar com os Apóstolos o
dom do Espírito (cf.
Act 1, 14). O
movimento de amor entre o
Pai e o Filho no Espírito
percorreu a nossa história;
Cristo atrai-nos a Si para
nos poder salvar (cf. Jo
12, 32). No centro da
fé, encontra-se a confissão
de Jesus, Filho de Deus,
nascido de mulher, que nos
introduz, pelo dom do
Espírito Santo, na filiação
adoptiva (cf. Gl 4,
4-6).
60.
A Maria, Mãe da
Igreja e Mãe da nossa
fé, nos dirigimos,
rezando-Lhe:
Ajudai, ó Mãe, a nossa fé.
Abri o nosso ouvido à Palavra, para reconhecermos a voz de Deus e a sua chamada.
Despertai em nós o desejo de seguir os seus passos, saindo da nossa terra e acolhendo a sua promessa.
Ajudai-nos a deixar-nos tocar pelo seu amor, para podermos tocá-Lo com a fé.
Ajudai-nos a confiar-nos plenamente a Ele, a crer no seu amor, sobretudo nos momentos de tribulação e cruz, quando a nossa fé é chamada a amadurecer.
Semeai, na nossa fé, a alegria do Ressuscitado.
Recordai-nos que quem crê nunca está sozinho.
Ensinai-nos a ver com os olhos de Jesus, para que Ele seja luz no nosso caminho. E que esta luz da fé cresça sempre em nós até chegar aquele dia sem ocaso que é o próprio Cristo, vosso Filho, nosso Senhor.
Dado em
Roma, junto de São Pedro, no
dia 29 de Junho, solenidade
dos Apóstolos São Pedro e
São Paulo, do ano 2013,
primeiro de Pontificado.
FRANCISCUS
[1]
Dialogus cum
Tryphone Iudaeo, 121, 2:
PG 6, 758.
[2] Clemente de
Alexandria, Protrepticus,
IX: PG 8, 195.
[3] « Brief an
Elisabeth Nietzsche (11 de
Junho de 1865) », in:
Werke in drei Bänden
(Munique 1954), 953-954.
[4] Divina
Comédia, Paraíso, XXIV,
145-147.
[5] Acta
Sanctorum, Iunii, I, 21.
[6]
« Embora o Concílio não
trate expressamente da fé,
todavia fala dela em cada
página, reconhece o seu
carácter vital e
sobrenatural, supõe-na
íntegra e forte e constrói
sobre ela os seus
ensinamentos. Bastaria
lembrar as declarações
conciliares (...) para nos
darmos conta da importância
essencial que o Concílio,
coerente com a tradição
doutrinal da Igreja, atribui
à fé, à verdadeira fé,
aquela que tem Cristo como
fonte e, como canal, o
magistério da Igreja »
[Paulo VI, Audiência
Geral (8 de Março de
1967): Insegnamenti V
(1967), 705].
[7] Cf., por
exemplo, Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé
católica Dei Filius,
III: DS 3008-3020;
Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogm. sobre a divina
Revelação
Dei Verbum,
5;
Catecismo da Igreja
Católica, 153-165.
[8] Cf.
Catechesis, V, 1: PG
33, 505A.
[9]
Enarratio in
Psalmum, 32, II, s. I,
9: PL 36, 284.
[10] Martin Buber,
Die Erzählungen der
Chassidim (Zurique
1949), 793.
[11] Émile
(Paris 1966), 387.
[12]
Lettrè à
Christophe de Beaumont
(Lausanne 1993), 110.
[13] Cf. In
evangelium Johannis
tractatus, 45, 9: PL
35, 1722- 1723.
[14] Parte II, IV.
[15] De
continentia, 4, 11:
PL 40, 356 (« ab eo qui
fecit te noli deficere nec
ad te »).
[16] « Vom
Wesen katholischer
Weltanschauung (1923) », in:
Unterscheidung des
Christlichen. Gesammelte
Studien 1923-1963 (Mainz
1963), 24.
[17]
Confessiones,
XI, 30, 40: PL 32,
825.
[18] Cf. ibid.:
o. c., 825-826.
[19]
Cf. G. H. von Wright
(coord.), Vermischte
Bemerkungen / Culture and
Value (Oxford 1991),
32-33 e 61-64.
[20] Cf. Homiliae
in Evangelia, II, 27, 4:
PL 76, 1207 (« amor
ipse notitia est »).
[21] Cf.
Expositio super Cantica
Canticorum, XVIII, 88:
CCL, Continuatio
Mediaevalis, 87, 67.
[22]
Ibid.,
XIX, 90: o. c., 87,
69.
[23] « A Deus que
revela é devida a
"obediência da fé" (Rm
16, 26; cf. Rm 1,
5; 2 Cor 10, 5-6);
pela fé, o homem entrega-se
total e livremente a Deus,
oferecendo a Deus revelador
o obséquio pleno da
inteligência e da vontade e
prestando voluntário
assentimento à sua
revelação. Para prestar esta
adesão da fé, são
necessários a prévia e
concomitante ajuda da graça
divina e os
interiores auxílios do
Espírito Santo, o qual move
e converte a Deus o coração,
abre os olhos do
entendimento, e dá a todos a
suavidade em aceitar e crer
a verdade. Para que a
compreensão da revelação
seja sempre mais profunda, o
mesmo Espírito Santo
aperfeiçoa sem cessar a fé
mediante os seus dons » (Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm.
sobre a divina Revelação
Dei Verbum, 5).
[24]
Cf. Heinrich Schlier, «
Meditationen über den
Johanneischen Begriff der
Wahrheit », in: Besinnung
auf das Neue Testament.
Exegetische Aufsätze und
Vorträge 2 (Friburgo,
Basel, Viena 1959), 272.
[25]
Cf. Summa theologiae,
III, q. 55, a. 2, ad 1.
[26] Sermo
229/L, 2: PLS 2, 576
(« Tangere autem corde, hoc
est credere »).
[27] Cf. n.º 73:
AAS (1999), 61-62.
[28]
Cf. Confessiones,
VIII, 12, 29: PL 32,
762.
[29]
De Trinitate, XV, 11,
20: PL 42, 1071.
[30]
Cf. De civitate Dei,
XXII, 30, 5: PL 41,
804.
[31]
Cf. Congr. para a Doutrina
da Fé, Decl.
Dominus
Iesus (6 de Agosto de
2000), 15: AAS 92
(2000), 756.
[32]
Demonstratio apostolicae
praedicationis, 24:
SC 406, 117.
[33] Cf. Boaventura,
Breviloquium, Prol.:
Opera Omnia, V (Quaracchi
1891), 201; In I librum
sententiarum, Proem., q.
1, resp.: Opera Omnia,
I (Quaracchi 1891), 7;
Tomásde Aquino,
Summa
theologiae, I, q.
1.
[34] Cf. De
Baptismo, 20, 5: CCL
1, 295.
[35]
Const. dogm. sobre a divina
Revelação
Dei Verbum,
8.
[36] Cf. Conc. Ecum.
Vat. II, Const. sobre a
sagrada Liturgia
Sacrosanctum Concilium,
59.
[37] Cf. Epistula
Barnabae, 11, 5: SC
172, 162.
[38] Cf. De
nuptiis et concupiscentia,
I, 4, 5: PL 44, 413
(« Habent quippe intentionem
generandi regenerandos, ut
qui ex eis saeculi filii
nascuntur in Dei filios
renascantur »).
[39]
Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogm. sobre a divina
Revelação
Dei Verbum,
8.
[40]
In nativitate Domini
sermo, 4, 6: SC
22, 110.
[41]
Cf. Ireneu, Adversus
haereses, I, 10, 2:
SC 264, 160.
[42] Cf. ibid.,
II, 27, 1: o. c.,
294, 264.
[43] Cf. Agostinho,
De sancta virginitate,
48, 48: PL 40, 424-
425 (« Servatur et in fide
inviolata quaedam castitas
virginalis, qua Ecclesia uni
viro virgo casta cooptatur
»).
[44] Cf. An Essay
on the Development of
Christian Doctrine (Uniform
Edition: Longmans, Green and
Company, Londres 1868-1881),
185-189.
[45] Cf. Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre
a divina Revelação
Dei Verbum, 10.
[46] Orígenes,
Contra Celsum, IV, 75:
SC 136, 372.
[47]
Ibid.,
85: o. c., 136, 394.
[48]
« Choruses from The Rock
», in: The Collected
Poems and Plays
1909-1950 (Nova Iorque
1980), 106.
[49] Cf. Dialogus
cum Tryphone Iudaeo,
100, 5: PG 6, 710.
[50] Cf. Conc. Ecum. Vat.
II, Const. dogm. sobre a Igreja
Lumen gentium, 58.
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Editrice Vaticana
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